sábado, 2 de novembro de 2013

Curso: "Freud e Nietzsche: filosofia, psicologia e psicanálise"

        Ocorre na UFPel, no curso de Pós-Graduação Latu Sensu em Filosofia – Especialização, a disciplina “Freud e Nietzsche: filosofia, psicologia e psicanálise” ministrada pelo Prof. Dr Luís Rubira. O objetivo da disciplina é evidenciar as leituras que ambos “psicólogos” possuem em comum, além de “analisar as convergências e divergências de ambos, em especial em relação à Schopenhauer e Hartmann no que diz respeito à noção de “inconsciente”; Estudar os conceitos de “memória” e “consciente” em Nietzsche a partir das obras A Genealogia da Moral (1887) e Ecce homo (1888); Investigar o conceito de “inconsciente” em Freud, bem como o método para interpretação do material onírico a partir da obra A interpretação dos sonhos (1900), de Freud; Estabelecer as diferenças entre a psicologia trágica em Nietzsche e a psicanálise de Freud” (texto retirado da ementa da disciplina).

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Retomada das atividades

      Nosso próximo encontro será no dia 11 de outubro (Sexta-Feira), 17 horas, sala 204 no Centro de Ciências Sociais (Rua Alberto Rosa 154). Neste semestre (2013/2) continuaremos debruçados sobre a obra A Gaia Ciência, partindo do livro III § 109 – Guardemo-nos!
Todos estão convidados! Abaixo segue um trecho do texto que será o tema da nossa próxima discussão:



“Mas como poderíamos nós censurar ou louvar o universo? Guardemo-nos de atribuir-lhe insensibilidade e falta de razão, ou o oposto disso; ele não é perfeito nem belo, nem nobre, e não quer tornar-se nada disso, ele absolutamente não procura imitar o homem! Ele não é absolutamente tocado por nenhum de nossos juízos estéticos e morais!”

sábado, 10 de agosto de 2013

V Encontros Nietzsche - UFPel

Entre os dias 19 e 24 de agosto ocorrerá o V Encontros Nietzsche - UFPel. 
Haverá conferências, debates, oficinas de leitura, atividades artísticas e lançamentos de livros. Tod@s estão convidad@s



segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Aviso

Informamos que, em função da preparação e realização do Encontros Nietzsche, o Grupo de Estudos Nietzsche - UFPel entra em recesso até o dia 30/08 (a reunião do dia 09/08 está cancelada). A retomada do estudo da obra A Gaia Ciência se dará com a discussão dos aforismos 107 e 109, a ser conduzida por Clademir Araldi. 

Relato da reunião do dia 26/07/2013 sobre A Gaia Ciência §80 e §82

Autorretrato com a orelha cortada - Vincent Van Gogh (1889)
Na reunião do dia 26 de julho de 2013, foram lidos e debatidos os aforismos §76 e §77 de A gaia ciência (1882). Num primeiro momento, foi discutido o aforismo §76, “O perigo maior”, tendo sido entendido que para Nietzsche existe um grupo de homens que não consegue viver com fantasias, tendo uma necessidade de engessar o mundo. Foi a disciplina da mente desses homens, entendida enquanto racionalidade, que garantiu a preservação da humanidade. Por outro lado, haveriam os loucos, aqueles capazes da irrupção de loucura entendida como “irrupção do capricho no sentir, ver e ouvir, o gosto na indisciplina da mente, a alegria no ‘mau senso’”. Com isso foi discutido, durante a reunião, que o louco seria aquele portador da capacidade de mudança. Isto porque a loucura só é entendida enquanto tal pois é exceção, já que, se todos fossem loucos, a loucura seria a razão.
            Assim, entendeu-se que no pensamento de Nietzsche o que está em jogo para os homens que entendem ser a sua racionalidade o motivo de seu orgulho não é a verdade ou a certeza acerca de uma crença, mas sim submeter-se à lei da concordância, ou seja, o disciplinar de sua mente. De tal maneira, haveria o erro de dar sentido ao que não tem sentido, e a submissão a tal crença. No entanto, o filósofo compreende que justamente essa disciplina da mente foi a responsável pela conservação da humanidade.
            Quanto ao contexto de onde surgiriam esses loucos, observou-se que justamente os investigadores da verdade são os que primeiramente se cansam do ritmo lento dessa investigação, assim como artistas e poetas, pois são espíritos impacientes. Foi ressaltado que Nietzsche está utilizando termos que fazem referência à arte, como “metrônomos”, “ritmo”, “dança”. Também foi discutido que o erro conservou a humanidade, e que os loucos também são necessários para a economia da conservação, contanto que haja um controle sobre estes, pois são uma exceção que não pode tornar-se regra. Por fim, apontou-se o tom descritivo do aforismo, sem muitas prescrições, evidenciando-se que Nietzsche parece interessado em explicitar o papel que o louco tem, bem como seu perigo, não o vendo apenas como um indivíduo à parte da sociedade.
            Em seguida, com a leitura do aforismo §77, O animal com boa consciência, debateu-se que o Sul da Europa estaria mais marcado pela relação com o Império Romano, enquanto que o Norte com os bárbaros, sendo ressaltado que para Nietzsche a ideia de refinamento está relacionada com o mundo greco-romano, por isso havendo esta valorização do Sul como não possuindo problemas com a vulgaridade, posto que “o que aí é vulgar se apresenta com a certeza e segurança de si de qualquer coisa nobre”. Por outro lado, no Norte encontraríamos um rigor de costumes, havendo assim uma vergonha do artista que se rebaixa.

            Foi também debatido o significado do uso da imagem de máscaras no aforismo.  Seria no mesmo sentido da caracterização dos gregos como “superficiais por profundidade”, ou seja, como uma forma de encobrir a profundidade? Ou seria no sentido de o artista utilizar-se da máscara como forma de alcançar a universalidade? Assim, a  máscara seria associada à “regra”, e a “loucura” estaria relacionada às vanguardas. Com isso, entendeu-se que um gosto mais refinado não se utilizaria do artifício da máscara. 

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Relato da reunião do dia 19/07/2013 sobre A Gaia Ciência §57 e §58

Retrato de Mademoiselle Caroline Rivière - Ingres (1806)
No encontro do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel do dia 19 de julho de 2013, deu-se início ao estudo do Livro II de A gaia ciência (1882) através da leitura e discussão dos aforismos §57 (“Aos realistas”) e §58 (“Somente enquanto criadores!”). 
Quanto ao aforismo §57, após sua leitura, foi destacado que nesta obra e, em especial, no Livro II, encontramos intensos diálogos com a arte. No entanto, também foi levantada a especulação de que ao falar de “realistas”, Nietzsche esteja se referindo à ciência mecanicista do século XIX, que se entendia enquanto isenta de paixões na sua prática, ou seja, que acreditava num acesso direto à realidade para o estabelecimento do conhecimento.  Portanto, Nietzsche se dirige a tais realistas como “queridas imagens de Sais”, numa referência à obra de Schiller em que um jovem egípcio busca a verdade e quando a descobre é acometido por algo ruim. Seria identificável, de tal forma, uma postura prepotente da ciência quando esta pensa ver a realidade do mundo como nunca se viu antes, fundando-se, por exemplo, numa confiança em seu rigoroso método. Ou seja, como se suas descrições do mundo estivessem isentas de qualquer cunho humano, como se não fossem baseadas em avaliações, fundadas em paixões humanas. E o que Nietzsche argumenta no aforismo é que estes “realistas” baseiam-se em avaliações ultrapassadas, oriundas de paixões de séculos passados.
Também foi apontado, durante a reunião, que encontramos neste período da obra do filósofo alemão a defesa de uma postura que continuará a ser apresentada até o seu período maduro, qual seja, a de que o importante para Nietzsche não será observar uma ciência ou um sistema filosófico analisando internamente seus dogmas ou conceitos, mas buscando quais impulsos estão subjacentes a estes. Assim, quando se fala em “buscar a verdade” numa ciência, por exemplo, o importante é entender quais os interesses estão ocultos nesta dita busca. Como forma de problematizar a questão, também foi ressaltado que a matemática surge como um forte instrumento para fundamentar a legitimação de tal realismo, justamente por servir de forte apelo retórico para formar uma visão do conhecimento como algo frio, sem qualquer interferência subjetiva.
Também foi questionado como compreender o estatuto da ciência, para Nietzsche, nesta relação entre a arte e o saber jovial, na medida em que o filósofo nega o seu caráter absoluto. Foi colocado, então, que o posicionamento de Nietzsche é relativo ao perspectivismo, entendido enquanto intermediário entre a posição radical de um dogmatismo e o relativismo, tendo em vista que para este último todas as posições possuem o mesmo valor, enquanto que para Nietzsche as coisas possuem valores diferentes.
Por fim, observou-se que o uso do termo “embriaguez” no aforismo refere-se a um estado da modernidade, e que os “homens sóbrios” seriam aqueles que também estariam embriagados, mas, no entanto, sem perceber sua embriaguez, enquanto Nietzsche aponta para outra perspectiva de “boa vontade em ultrapassar a embriaguez”. 
Após tais discussões, seguiu-se a leitura do aforismo §58, “Somente enquanto criadores!”. Nietzsche inicia tal aforismo apontando que lhe é mais importante compreender como as coisas se chamam do que aquilo que elas são, ao que durante a discussão relacionou-se com uma posição nominalista do debate dos universais, em que encontramos a diferença entre a essência e os nomes. Isto estaria ligado com o fato de, para Nietzsche, não haver uma realidade universal acessível sem avaliações. O filósofo entenderia, assim, que de uma postura inicial de fixação de nomes redundou-se em um essencialismo. Ou seja, a fixação dos nomes, dos pesos e medidas e do modo como as coisas são vistas “gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo”: a aparência torna-se essência e atua como essência.

Por fim, foi especulado que novamente Nietzsche poderia estar criticando a ciência na medida em que apresenta uma nova proposta, a saber, a de que para destruir faz-se necessário criar algo novo. Com isso, estaria apontando o erro da ciência em acreditar que quando se desse a revelação das coisas verdadeiras, todas as interpretações anteriores estariam destruídas e descartadas enquanto errôneas, estando assim também fixado um futuro baseado em tais “verdades”. 

Sobre a imagem[1]:
Jean Auguste Dominique Ingres foi um conhecido pintor neoclassicista, considerado o último representante dos devotos às tradições da arte. Não por acaso, era reconhecido retratista (seu gênero favorito). Em seus quadros, acreditava captar e transmitir perfeitamente a essência do modelo sobre o qual se debruçava, através de uma "pureza linear". Dizia que conseguia fazê-lo de forma ainda mais excelente se almoçasse com o modelo ou pudesse fazer qualquer outra atividade que os descontraísse e aflorasse "as expressões naturais" da pessoa.
Algumas de suas obras não foram reconhecidas pela academia (ainda muito rigorosa nessa época) que lhe recomendava "estudar mais os clássicos", porém sem incorrer em arcaísmos, como às vezes fazia. Devido à sua paixão pelo ideal grego, chegava até mesmo a distorcer suas modelos na tela, a fim de "aprimorá-las". Como diz Giulio Carlo Argan explicando Canova (o fundador do belo ideal dessa época, porém fazendo-o majoritariamente através da escultura - o que só vem a nos mostrar a esmagadora influência dos gregos neste período), o belo ideal estava na figura ou, mais precisamente, no sublimar-se da figura até identificar-se com a ideia transcendental do belo. Ingres não admitia suas tendências de excessiva idealização que o levavam a distorcer forma e espaço – o que podemos entender como “a natureza corrigida pela arte”; tanto que se opôs veemente ao Romantismo que aflorava em sua época (com Delacroix, principalmente). No entanto foram justamente os adeptos deste movimento que souberam reconhecer seu valor, e não a academia a quem tanto respeitava.
O que vemos, então, é um artista que aperfeiçoa obsessivamente a técnica, produz em uma tela uma espécie de "fotografia idealizada" do modelo. É tão devoto às diretrizes da tradição clássica que distorce seu mundo a fim de segui-las. Ingres é um grego artificial e, junto de sua personalidade, carrega inovações que mais tarde servirão de inspiração para artistas Modernos como Picasso e Matisse, que estão longe de dobrarem-se às tradições. Ingres incorreu, em seu discurso, a uma autoenganação de que era inteiramente ortodoxo. Inebriado por sua paixão, apenas podia acreditar-se neoclassicista.



[1] Seleção e contextualização da imagem desenvolvidas por Luísa Caroline da Silveira Pogozelski.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A Gaia Ciência §11 – A consciência

Igor Morski - Enpundit

Nietzsche inicia o aforismo traçando considerações sobre o desenvolvimento orgânico da consciência e, ao fazê-lo, a entende como último elemento desenvolvido no homem; não para apresentá-la como ápice e ponto culminante da evolução, como faria uma interpretação darwinista, mas apontando justamente para seu caráter inacabado e “menos forte”. Com efeito, essa consciência inacabada leva a erros que podem conduzir a humanidade à destruição, o que somente não ocorreu em virtude do “vínculo dos instintos”.

Como a consciência não está matura, ela é um perigo para o organismo de modo que a tirania sobre ela possui um aspecto positivo: o homem não procurou mais por ela e, de alguma forma, estagnou o seu possível desenvolvimento acelerado. O curioso é que foi justamente essa tirania – má compreensão e orgulho do homem com relação à consciência, tomando-a por grandeza dada, por faculdade acabada e crendo nela repousar a essência do organismo – que desacelerou os seus erros, permitindo a, ainda embrionária: “tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo”.

A Gaia Ciência §2 - A consciência intelectual

"A solidão no alvorecer" por Johann Heinrich Füssli

Neste aforismo, Nietzsche questiona as formas com que as pessoas se relacionam com as suas crenças. Enquanto por uma via há aqueles que possuem crenças mesmo sem fornecer as razões para elas; por outro lado há a via da suspeita. Sendo assim, Nietzsche inicia o aforismo argumentando que embora não queira acreditar naquilo que sua experiência lhe mostra como evidente, a saber, que “a grande maioria das pessoas não tem consciência intelectual”, tal observação é palpável demais para que consiga se rebelar contra ela. O filósofo alemão diagnostica que aqueles que consideram necessária tal consciência, e a exigem dos outros, encontram-se solitários, ainda que rodeados de pessoas, como nas cidades populosas, já que não há pares nessa sua exigência no trato com as crenças.
Nietzsche também aponta que não só as pessoas são desprovidas da referida consciência intelectual, como também são indiferentes àqueles que as alertam a respeito disso. Portanto, a indiferença das pessoas frente a este questionador funciona como um agravante ao deserto da sua solidão. Isto porque a indiferença se apresenta como a ausência de oposição, ou seja, sequer existe uma tensão, uma forma de interação com o questionador, ainda que de conflito. Logo, aquele que aponta que a forma de valorar das pessoas possa estar sendo injusta não recebe como retorno sequer indignação, e quando muito a reação será a de uma risada sobre a sua dúvida.
         Assim, a consciência intelectual está diretamente ligada à suspeita, à dúvida. Para Nietzsche, a grande maioria (o que incluiria “os mais talentosos homens e as mais nobres mulheres”) sequer duvida de suas crenças, não vê o problema que é estabelecer seus valores sem uma ponderação racional: “a grande maioria não acha desprezível acreditar isso ou aquilo e viver conforme tal crença, sem antes haver se tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou contra ela, e sem mesmo se preocupar depois com tais razões”. Assim, por melhor que seja alguém, por mais que seja dotado de “bondade, finura e gênio”, ainda seria um ser inferior, posto que de nada adianta tais virtudes se tal pessoa tolera em si mesma “sentimentos frouxos ao crer e julgar”, ou seja, se esta pessoa é leviana quanto ao que acredita e não tem a necessidade de buscar a certeza, o que caracteriza os homens superiores e os diferencia dos inferiores. 

         Até no piedoso, personagem que Nietzsche não admira, o filósofo identifica um ponto que nos melhores homens e mulheres não encontrou: este tem ódio à razão, o que seria uma tomada de posição frente à consciência intelectual, rejeitando-a, o que difere daqueles que são simplesmente indiferentes à ela. O que é desprezível para Nietzsche é estar diante de “toda a maravilhosa incerteza e ambigüidade da existência” e não se posicionar, nem interrogar e nem ter ódio por quem interroga, como o piedoso. Nietzsche aponta, então, que o que procura primeiramente nas pessoas é a percepção do quanto isto é desprezível, e argumenta que “algum desatino está sempre a me convencer de que todo ser humano tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de injustiça”. Ou seja, está sendo injusto na medida em que pensa que todos tem tal percepção, o que está relacionado com o aforismo seguinte, §3: Nobre e Vulgar, em que escreve sobre a “eterna injustiça dos nobres”. Tal injustiça significa que os nobres consideram sua idiossincrasia do gosto necessária a todos, afirmam posições novas partindo desta sua idiossincrasia, o que só é possível na medida em que estes não sentem a si mesmos como naturezas excepcionais.
Resumo efetuado por José Luiz Votto 

A Gaia Ciência §1 - Os mestres da finalidade da existência

O Enterro do Conde de Orgaz - El Greco

No encontro do GEN-UFPel do dia 24 de maio de 2013 foi dado o início ao estudo da obra A gaia ciência (1882) com a leitura e discussão do primeiro aforismo do Livro I, Os mestres da finalidade da existência. Este inicia com a afirmação de Nietzsche de que observa em todos os seres humanos o trabalho para a conservação da espécie, entendido não como motivado por um amor à espécie, mas enquanto o mais forte instinto nos homens. Este instinto seria “precisamente a essência da linhagem e rebanho que somos”, ou seja, estaria inerente em todos nós.
Ao advogar a tese de que um instinto inexorável, que direciona os homens à conservação da linhagem, está presente em toda a espécie, Nietzsche faz também uma crítica à divisão estanque das pessoas entre úteis e nocivas, pois até “a pessoa mais nociva pode ser a mais útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém em si ou, por sua influência, em outras, impulsos sem os quais a humanidade teria há muito se estiolado ou corrompido”. Desta forma, também tudo aquilo que se chama de mau (como a ânsia de rapina e domínio) seria parte de uma “assombrosa economia da conservação da espécie”, economia esta que, segundo Nietzsche, conservou a nossa estirpe.  Não haveria, então, ações boas ou más na medida em que de qualquer forma tais ações resultariam na conservação da espécie.
Nessa economia global da conservação da espécie, o peso da existência do sujeito deixa de ser tão forte, de modo que Nietzsche sugere que se siga “os seus melhores ou os seus piores desejos e, sobretudo, pereça!”, pois afinal não importaria o tipo do desejo, posto que, de qualquer forma, o seu leitor seria “benfeitor da humanidade”.  Com isso, Nietzsche está afirmando que o indivíduo visto da perspectiva da espécie não teria relevância, ou seja, que não haveria diferença para a continuidade da linhagem se o indivíduo adotou uma postura moral ou outra.
No entanto, ainda não teriam surgido aqueles capazes de rir inclusive das melhores características dos outros e de si mesmos, evidenciando sua “ilimitada miséria de rã e de mosca”, ou seja, sua insignificância num quadro geral da humanidade inscrita na história. Com isto, fica claro que ainda não se percebeu esta “verdade”, e também que sequer os melhores tiveram essa percepção, não tendo sido por isso capazes de rir de si mesmos.
Para Nietzsche, o riso só teria futuro a partir do momento em que a tese “a espécie é tudo, o indivíduo, nada” fosse incorporada à humanidade, abrindo-se o acesso a uma libertação e irresponsabilidade, de tal forma que “talvez o riso tenha se aliado à sabedoria, talvez haja apenas gaia ciência”. Contudo, Nietzsche diagnostica que no seu presente há uma tragédia, referente ao fato desse ser o “tempo das morais e religiões”. Com isto, o filósofo alemão se pergunta o que significa o aparecimento sempre renovado dos fundadores destas morais e religiões, dos incitadores da luta pelas avaliações morais e dos mestres dos remorsos e das guerras religiosas. Seguindo o contexto do termo tragédia, descreve esses como os “heróis num palco”, e coloca os poetas, por exemplo, como aqueles que sempre foram “camareiros de alguma moral”. Reiterando a sua tese de que todos trabalham para a conservação da espécie, movidos pelo mais forte dos impulsos; Nietzsche afirma que estes heróis também o fazem, ainda que pensem estar a serviço de Deus, eles, em verdade, “promovem a vida da espécie, ao promover a fé na vida”.
Tal impulso de conservação surgiria ocasionalmente como razão e paixão do espírito, trazendo motivos e querendo fazer esquecer que é impulso, ou seja, ausência de motivos. Isto seria efetuado através dos mestres da ética enquanto mestres da finalidade da existência. Estes seriam aqueles que dão sentido ao que não tem sentido, ou seja, as coisas que ocorrem necessariamente e por si, e que são explicadas por eles enquanto tendo sido feitas para uma finalidade, enquanto razão. Para isso, esse mestre da ética inventa uma segunda existência[3], pois esse mundo não possuiria sentido imanente, sendo necessário recorrer a algo fora dele. E também para eles não haveria espécie, posto o indivíduo ser algo primordial.
Contudo, Nietzsche argumenta que sempre que surgem tais éticas, essas são vencidas pelo tempo: “a breve tragédia sempre passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir”, sendo esta comédia do existir aquela que traz um riso corretor. Apesar disso, no entanto, Nietzsche entende que houve uma modificação da natureza humana, pois haveria surgido uma nova necessidade, a saber, justamente a de que apareçam renovadamente tais mestres e doutrinas da finalidade. Esta necessidade seria referente à condição existencial de o homem ter de acreditar ocasionalmente saber a razão de sua existência.
Resumo efetuado por José Luiz Votto

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Introdução à obra "A Gaia Ciência"


Na reunião do dia 17 de maio de 2013 ocorreu o primeiro encontro do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel, no qual tivemos a apresentação da metodologia e dos objetivos aos novos integrantes. Para melhor situar estes novos integrantes foi comunicado o ambiente de pesquisa em Nietzsche no Brasil (GEN – Grupo de Estudos Nietzsche) e no exterior (GIRN – Groupe International de Recherches sur Nietzsche). Ainda sobre a pesquisa em Nietzsche, foram apresentadas as principais revistas brasileiras especializadas no filósofo alemão.  
Com base na biografia de CurtPaul Janz, destacou-se não só os aspectos biográficos de Nietzsche no período de  A gaia ciência (1882) –  obra que será discutida no grupo ao longo do ano – mas também o contexto e a estrutura da obra. Como complemento, foi lido em conjunto o escrito de Giorgio Colli (Escritossobre Nietzsche, p. 77-85), o qual nos fornece uma bela introdução sobre os temas presentes na obra, tais como a relação entre ciência e arte.
No xerox Meta Cópias ( Alberto Rosa esquina Alm. Tamandaré) está disponível um material de apoio às atividades do grupo.
A próxima reunião será no dia 24 de maio na sala D, às 17 horas. Iremos trabalhar os dois primeiros aforismos do livro I de A gaia ciência

domingo, 5 de maio de 2013

Defesa da dissertação: Nietzsche e a Renascença italiana: um ensaio sobre as imbricações entre estética, moral e política.


Início das atividades do Grupo de Estudos Nietzsche - UFPel


Iniciaremos as atividades do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel no dia 17 de maio (sexta-feira). Lembramos que o grupo não é destinado apenas aos estudantes de filosofia, mas também a todos os que possuem interesse na filosofia de Nietzsche. A reunião será na sala D do CCS (Rua Alberto Rosa n.154). A obra que estudaremos neste ano é “A gaia ciência” (1882).

Vejamos o que Giorgio Colli afirma sobre “A gaia Ciência”:

“A Gaia Ciência também é central no que respeita à posição entre arte e ciência. A paixão ininterrupta de Nietzsche por este tema reflete as vivências da luta interna entre as suas vocações antitéticas: de vez em quando um escrito revela o deslanche momentâneo da luta. Aqui, ao contrário, só o título é já o indício de uma nova resolução: o combate interior – um outro significado da ‘doença’ – não conduz à eliminação de um dos dois combatentes (reprimir, sufocar uma parte vital de si não seria de fato restabelecimento), mas à fundação de uma coexistência, numa esfera transfigurada. Isto é ‘saúde’, poder ser poeta e cientista conjuntamente, poder exercitar uma ciência não amuada, nem empertigada, nem sequer séria”.

domingo, 28 de abril de 2013

Minicurso: Noções gerais acerca do tema do ressentimento na filosofia de Nietzsche


O propósito do curso é colocar em relevo o modo como o conceito “ressentimento” aparece e é utilizado na filosofia de Friedrich Nietzsche e as possibilidades de superação do ressentimento consideradas por ele e a partir de seu pensamento. O curso será organizado em três partes: na primeira será caracterizado o conceito de ressentimento, seu aparecimento, constituição e diferentes usos no interior da obra de Nietzsche; na segunda será analisada a questão do ressentimento em associação com a noção de vontade de poder e em comparação com a noção de má-consciência; na terceira serão discutidas algumas possibilidades de saídas para o problema do ressentimento na e a partir da filosofia de Nietzsche.




Ministrante: Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal (PUC-PR)

 Período: 8 a 10 de maio:

dia 08: 15h - 18h30;

dia 09: 14h - 17h30;

dia 10: 8h30 - 11h30.

Local: Campus das Ciências Sociais (Rua Alberto Rosa, 154)

Inscrições: pelo e-mail ppgfilosofia@ufpel.edu.br

segunda-feira, 1 de abril de 2013

I Workshop Understanding Naturalism


       O Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel convida para o “I Workshop
Understanding Naturalism”. O evento ocorrerá nos dias 15 e 16 de abril. Destacamos a mesa redonda do dia 16 (17hrs), na qual o Prof. Dr. Clademir Araldi (UFPel) e o Prof. Dr. Rogério Lopes (UFMG) irão discutir sobre “o naturalismo em Nietzsche”.
É possível encontrar uma coletânea de textos sobre o tema do naturalismo em Nietzsche na edição 29 dos Cadernos Nietzsche publicada em 2011.



sexta-feira, 22 de março de 2013

A Gaia Ciência §§ 2, 3, 4


A Gaia Ciência §2
Nietzsche inicia o segundo aforismo de seu prólogo (1886) para a obra A Gaia Ciência (1882) abordando a relevância da sua saúde na criação de sua filosofia. Dado que no aforismo anterior o filósofo apresentava o período em que surge o livro que introduz com este texto – e atribuía a ele um caráter de esperança renovada e embriaguez da convalescença –, questiona-se sobre o “que temos nós com o fato de o sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?”. Assim, se coloca em terceira pessoa: seria este Nietzsche do texto aquele de 1882 ou o de 1886? Fica claro, aqui, que Nietzsche vê o ser humano, e no caso a si mesmo, como algo fugaz, que está em um constante processo de modificação, e que, ao escrever sobre suas obras passadas, é como se estivesse lendo outro autor, com outra saúde. A relação entre filosofia e saúde está inscrita entre as questões mais atraentes para um psicólogo, alega o filósofo, tendo em vista que “desde que se é uma pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa”.
            Com isto, Nietzsche assume a inevitável pessoalidade da filosofia, algo que nos remete à obra Além do bem e do mal, escrita no mesmo ano dos prólogos, em que considera toda filosofia como sendo a confissão de seu autor. Esta perspectiva da filosofia como algo pessoal também remete ao período em que Nietzsche viveu, a saber, de uma efervescência das possibilidades abertas pela ciência à filosofia – como, por exemplo, de entender o comportamento a partir de estudos científicos. Nietzsche continua sua argumentação no prólogo apresentando duas formas de origem da filosofia: a primeira, em que as deficiências filosofam, e a segunda, em que as riquezas e forças o fazem. Refere-se aos autores da primeira forma de filosofia como aqueles que necessitam da sua filosofia, “seja como apoio, tranqüilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si”, e aos da segunda forma como aqueles para os quais a filosofia é apenas um luxo, ou “no melhor dos casos a volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos”. 
            Tem-se aqui claramente um dos pontos mais marcantes para uma leitura naturalista de Nietzsche, a saber, da indissociabilidade entre alma e corpo, não sendo possível desta maneira se pensar uma alma imortal desligada do corpo mortal. Com isso, surgem alguns possíveis questionamentos com relação a esta perspectiva nietzschiana: até que ponto a fisiologia influencia na “alma”? Os pensamentos seriam completamente influenciados pelo corpo? A supremacia seria do corpo, ou do espírito? Tal perspectiva também poderia acarretar um problema grande como o do perigo de se cair em uma eugenia. No entanto, o próprio prefácio daria um argumento contra uma crítica neste sentido, pois como veremos no §3, para Nietzsche há uma necessidade da doença, na medida em que esta traz um aprofundamento daquele que a sofre. De sorte que a doença surge como algo que pode trazer contribuições à filosofia, mas sendo importante que esta supere a doença.
            Ainda que a filosofia possa surgir da doença, mas também da força, Nietzsche diagnostica que talvez a maior parte dos pensadores da história da filosofia tenham construído seus pensamentos baseados em suas crises. Surgiria, desta forma, o questionamento das conseqüências para o pensamento de uma tal sujeição da filosofia à doença. Para Nietzsche, o corpo doente impeliria o espírito ao sossego, brandura, remédio, e conclui assim que:

Toda filosofia que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende negativamente o conceito de felicidade, toda metafísica e física que conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora, permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo.

             Com isto, Nietzsche está criticando uma má-compreensão do corpo, fundada em um “inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade”, que pode ser encontrada na filosofia metafísica. Para o historiador e psicólogo, as “insânias da metafísica” seriam preciosas indicações, sintomas do êxito ou fracasso do corpo. Por fim, encerra o aforismo apontando para a expectativa de que um médico filosófico (aquele que se dedicaria à saúde de um povo, época, raça ou mesmo da humanidade) algum dia pudesse afirmar a suspeita de Nietzsche de que o filosofar não teria suas questões voltadas à busca da “verdade”, mas sim à saúde, futuro e, numa clara referência à vontade de poder, para o “poder, crescimento, vida”.

A Gaia Ciência §3
No terceiro aforismo de seu prólogo, Nietzsche ressalta que não é ingrato em relação ao período de doença pelo qual passou. Segundo ele, a instabilidade de sua saúde lhe trazia vantagens que outros que gozavam de força não teriam como alcançar. Assim, se tornaria questionável se a doença era realmente dispensável “para nós”. A grande dor seria o liberador do espírito, enquanto mestre da grande suspeita. Isto quer dizer que a dor desligaria os pensadores de sua confiança, de “tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade”. De tal maneira, a dor ocasionaria o aprofundamento (algo que Nietzsche entende como diferente de aperfeiçoamento), pois a ela é possível que se oponha o orgulho ou diante dela se gere um retiro para o “Nada oriental – denominado Nirvana –, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se, apagar-se”. Estes exercícios sobre si mesmo nos levam à questão de como dominar a si próprio e ainda interrogar-se? E em relação ao perspectivismo nietzschiano, como manter o ponto de interrogação e ainda ter o domínio sobre si? Nietzsche entende que, após o período de doença, se perde a confiança na vida, tendo esta mesma se tornado um problema, dado que passa a ser questionada “profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente”. No entanto, o amor à vida ainda é possível, como “o amor a uma mulher da qual se duvida”.
Haveria, assim, uma arte da transfiguração, que seria a própria filosofia, associada à vida de um filósofo que percorreu diversos estados de saúde, em que seu estado é transposto, a cada vez, “para a mais espiritual forma e distância”. A filosofia, então, nada teria a ver com algum acesso direto ao verdadeiro, mas de colocar a própria vida em forma de pensamento, não sendo assim possível uma distinção entre corpo e alma ou entre alma e espírito:

(...) não somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo.

            Encontramos aqui, portanto, um aspecto da filosofia entendida como aliada à fisiologia, na medida em que a filosofia seria escrita com o sangue. Nota-se também que Nietzsche se refere ao leitor como se este fosse também um filósofo. Há uma preocupação nos prólogos de 1886 que é a de definir o seu leitor ideal, aquele que estivesse capacitado à leitura de sua obra. Neste sentido, pode-se entender que a sua linguagem metafórica também seria uma forma de selecionar aquele leitor que Nietzsche desejava ter, o que tivesse vivências como as suas.

A Gaia Ciência §4
Como forma de encerrar o último dos prólogos escritos para suas obras anteriores, Nietzsche aponta novamente para o retorno da enfermidade. Quando fala de cura, está se referindo a uma cura num âmbito maior do que a doença de um corpo no sentido específico, a saber, da cura da humanidade. Entende esse retorno da enfermidade em que “voltamos renascidos (...) mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria”, como a origem de uma nova forma de lidar com a vida, com mais inocência, mas também marcada por um refinamento.
Neste sentido, é crítico do romantismo, e também do romantismo do conhecimento, pois “fere os ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora”. Assim, entende que há a necessidade de outra arte, oposta ao romantismo: uma arte para artistas, que seja “ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial”, sugerindo um retorno aos gregos. Estes, na leitura de Nietzsche, adoravam a aparência, permaneciam na superfície: “eram superficiais – por profundidade”, sendo requerido para isto uma jovialidade, um aprendizado do esquecimento, do não-saber.
O que Nietzsche sugere é que estas pessoas profundas, entre as quais se inclui e também ao seu leitor, não procurarão mais desvelar aquilo que por boas razões permanece oculto, ou seja, deixarão de lado a busca da verdade. O filósofo faz uma referência ao poema “A imagem velada de Sais”, de Schiller, em que um jovem egípcio é acometido por algo ruim quando desvela a verdade. E desta forma fica claro o seu entendimento da necessidade de se “respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas”.
“Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola”

Sobre a imagem:
Edvard Munch (1863 – 1944) teve sua vida profundamente relacionada com doenças – como, por exemplo, por ter perdido sua mãe e sua irmã devido à tuberculose – o que se reflete diretamente em sua obra. Em 1919 pinta o seu “Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola”, em que retrata a si mesmo, com fisionomia semelhante àquela do seu mais famoso quadro (“O Grito”, em que representa seu sofrimento por uma vida marcada por doenças), convalescente da gripe.

Resumo efetuado por José Luiz Votto


terça-feira, 5 de março de 2013

Próximo encontro

Nosso próximo encontro (08/03/2013) será na sala 101 do ICH, antigo prédio do Salis Goulart (Felix esquina Tiradentes).

segunda-feira, 4 de março de 2013

A Gaia Ciência, prólogo §1


“Árvore da Esperança, Mantém-te Firme” (1946)


Com o recomeço do Grupo de Estudos Nietzsche da UFPel, foi iniciado o estudo da obra A Gaia Ciência, publicada em 1882, através da leitura do primeiro aforismo de seu prólogo.  Este prólogo faz parte da releitura crítica feita por Nietzsche em 1886, ano em que escreveu Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro, assim como os prólogos para a segunda edição de suas obras O nascimento da tragédia, Humano, demasiado humano (I e II), Aurora e A gaia ciência. Com estes prólogos, Nietzsche busca esclarecer certos conceitos para reforçar a interpretação que gostaria que estes tivessem, e assim pode-se pensar que sua intenção era de “aproximar as obras juvenis daquelas de sua fase madura, inaugurada por um livro emblemático, Assim falou Zaratustra[1].

Desta forma, faz-se necessário considerar que os prólogos de 1886 possuem um aspecto de reposicionamento sobre temas da sua obra, sendo inscritos no terceiro período de sua produção (1882–1888), onde se encontra sua filosofia madura, posterior ao período intermediário em que os quatro primeiros livros de A gaia ciência foram escritos (1876–1882)[2]. No entanto, tal periodização poderia apresentar problemas, tal como colocado por Giorgio Colli, que alerta que temas de Assim falou Zaratustra – como a Morte de Deus, o Amor Fati, o Eterno Retorno e o próprio Zaratustra – já estariam presentes em A gaia ciência. Desta perspectiva, se poderia entender A gaia ciência como uma espécie de introdução à Assim falou Zaratustra. Sendo assim, a divisão em períodos não teria uma rigidez, mas seria uma forma de se compreender as mudanças dos referenciais adotados por Nietzsche em diferentes momentos de sua vida e, de tal maneira, apreender os movimentos de sua filosofia.

O prólogo de A gaia ciência inicia com um questionamento acerca de sua própria relevância, e também com a colocação, por Nietzsche, do leitor na posição de um provável incapacitado para a compreensão da sua obra, na medida em que a vivência das experiências singulares de Nietzsche na escrita desta possivelmente não seria algo passível de familiarização através da mera leitura de um livro: 

“Talvez não baste somente um prólogo para este livro; e afinal restaria sempre a dúvida de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa familiarizar-se com a vivência deste livro mediante prólogos”.

Tal como Assim falou Zaratustra, que Nietzsche considera um livro que exige vivências semelhantes às suas para a sua compreensão, o prólogo de A gaia ciência também problematiza as condições de possibilidade da comunicabilidade da obra que apresenta. Neste sentido, pode-se refletir sobre a tarefa do estudo do pensamento de Nietzsche, quando ele próprio alerta para a importância que sua vida tem em sua obra, para a indissociabilidade entre suas vivências e sua produção filosófica. Assim, o estudo do pensamento nietzschiano deveria passar pela biografia do autor? Ou deveria se ater às suas publicações e ao que nelas foi expresso? 

A gaia ciência teria, nas palavras de Nietzsche, uma “atmosfera de abril”. O livro fora escrito após um período de forte crise na saúde do pensador, ocorrida na época da produção de Humano, demasiado humano, entre 1878 e 1879. A doença é descrita por Nietzsche no prólogo como a “tirania da dor”, a “velhice interposta no lugar errado”, e teria trazido como conseqüências uma “limitação ao que é amargo, acre, doloroso no conhecimento”. Sendo assim, seria possível dizer que um filósofo doente produziu uma filosofia doente? Estaria Nietzsche julgando suas obras anteriores ou apenas expondo as condições em que foram escritas?  Enquanto Aurora já era um novo despertar, A gaia ciência vem, com toda força, no mesmo sentido. Por isso o livro teria essa atmosfera de abril, a saída do inverno rumo à primavera, período de transição. Na época da escrita da obra, Nietzsche estava na transição entre doença e saúde, e utilizando-se da metáfora da atmosfera de abril, aprofunda sua descrição deste período como aquele em que “somos lembrados tanto da proximidade do inverno como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir, talvez já tenha vindo”.

Assim, a abertura da perspectiva de restabelecimento da saúde – em que um “espírito que pacientemente resistiu a uma longa, terrível pressão (...) sem sujeitar-se, mas sem ter esperança” é tomado por esta esperança de retomada de sua saúde – traria uma gratidão e uma embriaguez da convalescença. Segundo Nietzsche, A gaia ciência seria tomada dessa gratidão, e a embriaguez, por sua vez, seria a causa de “muita coisa irracional e tola” e de “muita leviana ternura” esbanjada com problemas “pouco dispostos a deixar-se acariciar”. O livro seria, então, um divertimento após a privação, um júbilo da retomada da força e da fé no futuro.

Trazendo estas explicações sobre o contexto pessoal anterior à escrita da obra, Nietzsche questiona “quem poderia experimentar tudo isso como eu fiz?”, e observa que, quem o fizesse, também perdoaria a inclusão de canções no livro, nas quais um poeta zomba de todos os poetas. Por fim, Nietzsche alerta que não são apenas os poetas o seu alvo, e quando cita Incipit tragoedia [A tragédia começa] do fim do livro que está apresentando (GC, Livro IV, §342), diz que nisso se anuncia algo maldoso: Incipit parodia [A paródia começa], numa alusão à Assim falou Zaratustra, obra que se segue à A gaia ciência, em que a paródia foi um recurso muito utilizado, sobretudo se apropriando de referenciais encontrados em textos bíblicos.   


Sobre a imagem:

Frida Kahlo é uma artista cuja obra foi marcada por sua saúde. Aos seis anos de idade teve poliomielite, o que a deixou com a perna direita mais curta e mais fina que a esquerda, além da musculatura atrofiada. Por este motivo, utilizava vestidos longos. Aos dezoito anos sofre um acidente em que seu ônibus choca-se com um bonde, sendo ela perfurada pelo pára-choque de um dos veículos, comprometendo sua coluna e incapacitando-a de dar à luz a filhos. Em 1946, após passar por mais uma cirurgia (ao todo foram trinta operações em sua vida, sendo sete de coluna), pinta o quadro “Árvore da Esperança, Mantém-te Firme”, em que retrata o sofrimento e a esperança de recuperação, representados por duas Fridas. Em suas mãos, além do colete para a coluna que a acompanhou por longo tempo, encontra-se uma bandeirola com a frase que dá título ao quadro.

''Estou quase terminando o quadro que nada mais é que o resultado da tal operação. Estou sentada à beira de um precipício - com o colete em uma das mãos. Atrás estou deitada numa maca de hospital - com o rosto voltado para a paisagem - um tanto das costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me deram os cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe.'' Frida Kahlo. 


Resumo efetuado por José Luiz Votto



[1] Cf. BURNETT, Henry. Cinco Prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche. Belo Horizonte: Tessitura, 2008, p. 19.
[2] Tomamos tal divisão em períodos da obra de Nietzsche de acordo com aquela apresentada por Scarlett Marton. Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos – 3. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 43-44.   


terça-feira, 15 de janeiro de 2013


Início das atividades do Grupo de Estudos Nietzsche - UFPel

1º de Março: Estudo do prefácio de "A Gaia Ciência"
8 de Março: Estudo do prefácio de "A Gaia Ciência"
15 de Março: Texto de Mazzino Montinari

Recesso

* Retomada em Maio com o estudo da obra "A Gaia Ciência"