“Árvore da Esperança, Mantém-te Firme” (1946) |
Com o
recomeço do Grupo de Estudos Nietzsche da UFPel, foi iniciado o estudo da obra A Gaia Ciência, publicada em 1882,
através da leitura do primeiro aforismo de seu prólogo. Este prólogo faz parte da releitura crítica feita
por Nietzsche em 1886, ano em que escreveu Além
do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro, assim como os prólogos
para a segunda edição de suas obras O
nascimento da tragédia, Humano,
demasiado humano (I e II), Aurora
e A gaia ciência. Com estes prólogos,
Nietzsche busca esclarecer certos conceitos para reforçar a interpretação que
gostaria que estes tivessem, e assim pode-se pensar que sua intenção era de
“aproximar as obras juvenis daquelas de sua fase madura, inaugurada por um
livro emblemático, Assim falou Zaratustra”
[1].
Desta
forma, faz-se necessário considerar que os prólogos de 1886 possuem um aspecto
de reposicionamento sobre temas da sua obra, sendo inscritos no terceiro
período de sua produção (1882–1888), onde se encontra sua filosofia madura,
posterior ao período intermediário em que os quatro primeiros livros de A gaia ciência foram escritos (1876–1882)[2]. No
entanto, tal periodização poderia apresentar problemas, tal como colocado por
Giorgio Colli, que alerta que temas de Assim
falou Zaratustra – como a Morte de Deus, o Amor Fati, o Eterno Retorno e o próprio Zaratustra – já estariam presentes em A gaia ciência. Desta perspectiva, se
poderia entender A gaia ciência como
uma espécie de introdução à Assim falou
Zaratustra. Sendo assim, a divisão em períodos não teria uma rigidez, mas
seria uma forma de se compreender as mudanças dos referenciais adotados por
Nietzsche em diferentes momentos de sua vida e, de tal maneira, apreender os
movimentos de sua filosofia.
O prólogo
de A gaia ciência inicia com um
questionamento acerca de sua própria relevância, e também com a colocação, por
Nietzsche, do leitor na posição de um provável incapacitado para a compreensão
da sua obra, na medida em que a vivência das experiências singulares de
Nietzsche na escrita desta possivelmente não seria algo passível de
familiarização através da mera leitura de um livro:
“Talvez
não baste somente um prólogo para este livro; e afinal restaria sempre a dúvida
de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa familiarizar-se com a
vivência deste livro mediante prólogos”.
Tal
como Assim falou Zaratustra, que Nietzsche considera um livro que exige vivências
semelhantes às suas para a sua compreensão, o prólogo de A gaia ciência também problematiza as condições de possibilidade da
comunicabilidade da obra que apresenta. Neste sentido, pode-se refletir sobre a
tarefa do estudo do pensamento de Nietzsche, quando ele próprio alerta para a
importância que sua vida tem em sua obra, para a indissociabilidade entre suas
vivências e sua produção filosófica. Assim, o estudo do pensamento nietzschiano
deveria passar pela biografia do autor? Ou deveria se ater às suas publicações e
ao que nelas foi expresso?
A gaia ciência teria,
nas palavras de Nietzsche, uma “atmosfera de abril”. O livro fora escrito após um
período de forte crise na saúde do pensador, ocorrida na época da produção de Humano, demasiado humano, entre 1878 e
1879. A doença é descrita por Nietzsche no prólogo como a “tirania da dor”, a
“velhice interposta no lugar errado”, e teria trazido como conseqüências uma
“limitação ao que é amargo, acre, doloroso no conhecimento”. Sendo assim, seria
possível dizer que um filósofo doente produziu uma filosofia doente? Estaria
Nietzsche julgando suas obras anteriores ou apenas expondo as condições em que
foram escritas? Enquanto Aurora
já era um novo despertar, A gaia ciência vem,
com toda força, no mesmo sentido. Por isso o livro teria essa atmosfera de
abril, a saída do inverno rumo à primavera, período de transição. Na época da
escrita da obra, Nietzsche estava na transição entre doença e saúde, e
utilizando-se da metáfora da atmosfera de abril, aprofunda sua descrição deste
período como aquele em que “somos lembrados tanto da proximidade do inverno
como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir, talvez já tenha
vindo”.
Assim, a
abertura da perspectiva de restabelecimento da saúde – em que um “espírito que
pacientemente resistiu a uma longa, terrível pressão (...) sem sujeitar-se, mas
sem ter esperança” é tomado por esta esperança de retomada de sua saúde – traria
uma gratidão e uma embriaguez da convalescença. Segundo Nietzsche, A gaia ciência seria tomada dessa
gratidão, e a embriaguez, por sua vez, seria a causa de “muita coisa irracional
e tola” e de “muita leviana ternura” esbanjada com problemas “pouco dispostos a
deixar-se acariciar”. O livro seria, então, um divertimento após a privação, um
júbilo da retomada da força e da fé no futuro.
Trazendo
estas explicações sobre o contexto pessoal anterior à escrita da obra,
Nietzsche questiona “quem poderia experimentar tudo isso como eu fiz?”, e
observa que, quem o fizesse, também perdoaria a inclusão de canções no livro,
nas quais um poeta zomba de todos os poetas. Por fim, Nietzsche alerta que não
são apenas os poetas o seu alvo, e quando cita Incipit tragoedia [A tragédia começa] do fim do livro que está
apresentando (GC, Livro IV, §342), diz que nisso se anuncia algo maldoso: Incipit parodia [A paródia começa], numa
alusão à Assim falou Zaratustra, obra
que se segue à A gaia ciência, em que
a paródia foi um recurso muito utilizado, sobretudo se apropriando de
referenciais encontrados em textos bíblicos.
Sobre a imagem:
Frida Kahlo é uma artista cuja obra foi marcada por sua
saúde. Aos seis anos de idade teve poliomielite, o que a deixou com a perna
direita mais curta e mais fina que a esquerda, além da musculatura atrofiada.
Por este motivo, utilizava vestidos longos. Aos dezoito anos sofre um acidente
em que seu ônibus choca-se com um bonde, sendo ela perfurada pelo pára-choque
de um dos veículos, comprometendo sua coluna e incapacitando-a de dar à luz a
filhos. Em 1946, após passar por mais uma cirurgia (ao todo foram trinta
operações em sua vida, sendo sete de coluna), pinta o quadro “Árvore da
Esperança, Mantém-te Firme”, em que retrata o sofrimento e a esperança de
recuperação, representados por duas Fridas. Em suas mãos, além do colete para a
coluna que a acompanhou por longo tempo, encontra-se uma bandeirola com a frase
que dá título ao quadro.
''Estou quase
terminando o quadro que nada mais é que o resultado da tal operação. Estou
sentada à beira de um precipício - com o colete em uma das mãos. Atrás estou
deitada numa maca de hospital - com o rosto voltado para a paisagem - um tanto
das costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me deram os
cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe.'' Frida Kahlo.
Resumo
efetuado por José Luiz Votto
[1]
Cf. BURNETT, Henry. Cinco Prefácios para
cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche. Belo
Horizonte: Tessitura, 2008, p. 19.
[2]
Tomamos tal divisão em períodos da obra de Nietzsche de acordo com aquela apresentada
por Scarlett Marton. Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche:
das forças cósmicas aos valores humanos – 3. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010, p. 43-44.
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