segunda-feira, 4 de março de 2013

A Gaia Ciência, prólogo §1


“Árvore da Esperança, Mantém-te Firme” (1946)


Com o recomeço do Grupo de Estudos Nietzsche da UFPel, foi iniciado o estudo da obra A Gaia Ciência, publicada em 1882, através da leitura do primeiro aforismo de seu prólogo.  Este prólogo faz parte da releitura crítica feita por Nietzsche em 1886, ano em que escreveu Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro, assim como os prólogos para a segunda edição de suas obras O nascimento da tragédia, Humano, demasiado humano (I e II), Aurora e A gaia ciência. Com estes prólogos, Nietzsche busca esclarecer certos conceitos para reforçar a interpretação que gostaria que estes tivessem, e assim pode-se pensar que sua intenção era de “aproximar as obras juvenis daquelas de sua fase madura, inaugurada por um livro emblemático, Assim falou Zaratustra[1].

Desta forma, faz-se necessário considerar que os prólogos de 1886 possuem um aspecto de reposicionamento sobre temas da sua obra, sendo inscritos no terceiro período de sua produção (1882–1888), onde se encontra sua filosofia madura, posterior ao período intermediário em que os quatro primeiros livros de A gaia ciência foram escritos (1876–1882)[2]. No entanto, tal periodização poderia apresentar problemas, tal como colocado por Giorgio Colli, que alerta que temas de Assim falou Zaratustra – como a Morte de Deus, o Amor Fati, o Eterno Retorno e o próprio Zaratustra – já estariam presentes em A gaia ciência. Desta perspectiva, se poderia entender A gaia ciência como uma espécie de introdução à Assim falou Zaratustra. Sendo assim, a divisão em períodos não teria uma rigidez, mas seria uma forma de se compreender as mudanças dos referenciais adotados por Nietzsche em diferentes momentos de sua vida e, de tal maneira, apreender os movimentos de sua filosofia.

O prólogo de A gaia ciência inicia com um questionamento acerca de sua própria relevância, e também com a colocação, por Nietzsche, do leitor na posição de um provável incapacitado para a compreensão da sua obra, na medida em que a vivência das experiências singulares de Nietzsche na escrita desta possivelmente não seria algo passível de familiarização através da mera leitura de um livro: 

“Talvez não baste somente um prólogo para este livro; e afinal restaria sempre a dúvida de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa familiarizar-se com a vivência deste livro mediante prólogos”.

Tal como Assim falou Zaratustra, que Nietzsche considera um livro que exige vivências semelhantes às suas para a sua compreensão, o prólogo de A gaia ciência também problematiza as condições de possibilidade da comunicabilidade da obra que apresenta. Neste sentido, pode-se refletir sobre a tarefa do estudo do pensamento de Nietzsche, quando ele próprio alerta para a importância que sua vida tem em sua obra, para a indissociabilidade entre suas vivências e sua produção filosófica. Assim, o estudo do pensamento nietzschiano deveria passar pela biografia do autor? Ou deveria se ater às suas publicações e ao que nelas foi expresso? 

A gaia ciência teria, nas palavras de Nietzsche, uma “atmosfera de abril”. O livro fora escrito após um período de forte crise na saúde do pensador, ocorrida na época da produção de Humano, demasiado humano, entre 1878 e 1879. A doença é descrita por Nietzsche no prólogo como a “tirania da dor”, a “velhice interposta no lugar errado”, e teria trazido como conseqüências uma “limitação ao que é amargo, acre, doloroso no conhecimento”. Sendo assim, seria possível dizer que um filósofo doente produziu uma filosofia doente? Estaria Nietzsche julgando suas obras anteriores ou apenas expondo as condições em que foram escritas?  Enquanto Aurora já era um novo despertar, A gaia ciência vem, com toda força, no mesmo sentido. Por isso o livro teria essa atmosfera de abril, a saída do inverno rumo à primavera, período de transição. Na época da escrita da obra, Nietzsche estava na transição entre doença e saúde, e utilizando-se da metáfora da atmosfera de abril, aprofunda sua descrição deste período como aquele em que “somos lembrados tanto da proximidade do inverno como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir, talvez já tenha vindo”.

Assim, a abertura da perspectiva de restabelecimento da saúde – em que um “espírito que pacientemente resistiu a uma longa, terrível pressão (...) sem sujeitar-se, mas sem ter esperança” é tomado por esta esperança de retomada de sua saúde – traria uma gratidão e uma embriaguez da convalescença. Segundo Nietzsche, A gaia ciência seria tomada dessa gratidão, e a embriaguez, por sua vez, seria a causa de “muita coisa irracional e tola” e de “muita leviana ternura” esbanjada com problemas “pouco dispostos a deixar-se acariciar”. O livro seria, então, um divertimento após a privação, um júbilo da retomada da força e da fé no futuro.

Trazendo estas explicações sobre o contexto pessoal anterior à escrita da obra, Nietzsche questiona “quem poderia experimentar tudo isso como eu fiz?”, e observa que, quem o fizesse, também perdoaria a inclusão de canções no livro, nas quais um poeta zomba de todos os poetas. Por fim, Nietzsche alerta que não são apenas os poetas o seu alvo, e quando cita Incipit tragoedia [A tragédia começa] do fim do livro que está apresentando (GC, Livro IV, §342), diz que nisso se anuncia algo maldoso: Incipit parodia [A paródia começa], numa alusão à Assim falou Zaratustra, obra que se segue à A gaia ciência, em que a paródia foi um recurso muito utilizado, sobretudo se apropriando de referenciais encontrados em textos bíblicos.   


Sobre a imagem:

Frida Kahlo é uma artista cuja obra foi marcada por sua saúde. Aos seis anos de idade teve poliomielite, o que a deixou com a perna direita mais curta e mais fina que a esquerda, além da musculatura atrofiada. Por este motivo, utilizava vestidos longos. Aos dezoito anos sofre um acidente em que seu ônibus choca-se com um bonde, sendo ela perfurada pelo pára-choque de um dos veículos, comprometendo sua coluna e incapacitando-a de dar à luz a filhos. Em 1946, após passar por mais uma cirurgia (ao todo foram trinta operações em sua vida, sendo sete de coluna), pinta o quadro “Árvore da Esperança, Mantém-te Firme”, em que retrata o sofrimento e a esperança de recuperação, representados por duas Fridas. Em suas mãos, além do colete para a coluna que a acompanhou por longo tempo, encontra-se uma bandeirola com a frase que dá título ao quadro.

''Estou quase terminando o quadro que nada mais é que o resultado da tal operação. Estou sentada à beira de um precipício - com o colete em uma das mãos. Atrás estou deitada numa maca de hospital - com o rosto voltado para a paisagem - um tanto das costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me deram os cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe.'' Frida Kahlo. 


Resumo efetuado por José Luiz Votto



[1] Cf. BURNETT, Henry. Cinco Prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche. Belo Horizonte: Tessitura, 2008, p. 19.
[2] Tomamos tal divisão em períodos da obra de Nietzsche de acordo com aquela apresentada por Scarlett Marton. Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos – 3. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 43-44.   


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