quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A psicologia dos impulsos em Aurora como ponto de aproximação de Nietzsche com o pensamento naturalista.

Texto de Leonardo Camacho de Oliveira - Mestrando do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPel.


Temos como meta para este breve ensaio instigar o debate acerca da interessante questão dos impulsos e como Nietzsche se serve dela para apresentar uma nova noção de sujeito. Para isto, nos voltaremos à obra Aurora (AU - 1881), onde tal noção é apresentada. Também intentaremos aproximar, apenas com relação a alguns pontos, as leituras de Hume e Nietzsche sobre o sujeito. Por fim, veremos como as considerações presentes em Aurora contribuem para uma interpretação naturalista do pensamento nietzschiano.
Antes de abordar o texto de Nietzsche é importante que tenhamos em mente a noção de sujeito “vigente” naquele contexto. Neste ponto, vemos como principal paradigma a noção kantiana, a qual coloca o homem como um ser dotado de uma natureza dual. Ele é um ser sensível (submetido de forma heterônoma às leis da natureza), mas capaz de razão, em outras palavras ele tem a capacidade de impor a si uma lei racional que ele mesmo constrói. Notemos que a capacidade de razão é, para Kant, o que distingue o homem do restante da natureza, podemos mesmo dizer que é o que faz do homem, homem. 
Nietzsche, contudo, não pode de forma alguma aceitar tal dicotomia do tipo homem, visto que esta capacidade de razão está ancorada, em última instância, no fato da razão[1]. Isto implica a difícil tarefa de interpretar a natureza humana sem recorrer a pontos dogmáticos ou metafísicos. Com efeito, o autor de Aurora vai perscrutar o subsolo e os alicerces dos “majestosos edifícios morais”, se servindo da atitude questionadora dos moralistas franceses e da frieza dos psicólogos empíricos ingleses, provocando a derrocada de uma série de “verdades”, as quais sustentavam a visão de mundo de seu tempo.
Um ponto de grande importância e especial interesse para este trabalho é o papel dos impulsos e pulsões no homem. Ao invés de endossar a visão de um sujeito que é capaz de sobrepujar seus impulsos através da razão, Nietzsche, vai apresentar a razão também como um impulso. No interessante aforismo 109 ele nos apresenta seis métodos para combater a veemência de um impulso, mas antes que possamos pensar que ainda existe uma possibilidade de se sobrepor aos impulsos, tal como havia em Kant, o filósofo nos brinda com seguinte conclusão:

(...) mas querer combater a veemência de um impulso não está em nosso poder, nem a escolha do método, e tampouco o sucesso ou fracasso desse método. Em todo esse processo, claramente, nosso intelecto é antes o instrumento cego de um outro impulso, rival daquele que nos tormenta com sua impetuosidade: seja o impulso por sossego, ou o temor da vergonha e de outras más consequências, ou o amor. Enquanto “nós” acreditamos nos queixar da impetuosidade de um impulso, é, no fundo, um impulso que se queixa de outro; isto é: a percepção do sofrimento com tal impetuosidade pressupõe que haja um outro impulso tão ou mais impetuoso, e que seja iminente uma luta, na qual nosso intelecto precisa tomar partido (Aurora: 109).

Vemos, então, como a noção de sujeito é fragmentada em impulsos, os quais se encontram em uma constate luta pelo domínio; cada impulso busca dominar os demais e impor sua interpretação ao todo. Com efeito, o sujeito ou “eu” é determinado a cada momento pelo resultado desta luta de impulsos, pois aquele impulso que domina impõe ao todo uma ordenação e hierarquização. De modo que as ações, interpretações, juízos e mesmo o próprio “ser” de um sujeito é resultado de um processo fisiopsicológico de disputa entre impulsos. Logo, o significado de nossas vivências, não só é relativo ao sujeito que as vivencia, mas também é relativo ao impulso dominante naquele sujeito. Como Nietzsche bem exemplifica: “Tomemos uma experiência trivial. Suponhamos que um dia, passando pelo mercado, notamos que alguém ri de nós: conforme esse ou aquele impulso estiver no auge em nós, esse acontecimento significará isso ou aquilo para nós” (Aurora: 119).
O pensador de Röcken, no entanto, é sensível a dificuldade de assimilação de suas profundas considerações sobre a natureza humana. Mesmo a palavra impulso possui uma carga semântica, que é derivada de sua relação de oposição com a razão. Tal carga, resultante de séculos de pensamento metafísico, é um empecilho para que compreendamos a proposta nietzschiana. No aforismo 115 temos a seguinte consideração a este respeito:

A linguagem e os preconceitos em que se baseia a linguagem nos criam diversos obstáculos no exame de processos e impulsos interiores: por exemplo, no fato de realmente só haver palavras para graus superlativos desses processos e impulsos -; mas estamos acostumados a não mais observar com precisão ali onde nos faltam as palavras, pois é custoso ali pensar com precisão; no passado concluía-se automaticamente que onde termina o reino das palavras também termina o reino da existência. Raiva, ódio, amor, compaixão, cobiça, conhecimento, alegria, dor – estes são todos nomes para estados extremos: os graus mais suaves e medianos, e mesmo os graus mais baixos, continuamente presentes, nos escapam, e, no entanto, são justamente eles que tecem a trama de nosso caráter e nosso destino. (Aurora: 115).

Podemos notar que, sob a interpretação de Nietzsche, a noção de impulso toma outro significado. Ao invés de serem tomados apenas como estados extremos, os impulsos podem ser medianos, ou mesmo suaves, o que nos permite, por exemplo, imaginar um impulso à serenidade, o qual se encontraria em oposição ao impulso à ansiedade. Claro está, que isto é fundamental para que compreendamos a proposta nietzschiana do sujeito fragmentado em impulsos, pois podemos compreender uma atitude tal como a de recusar uma bebida, não como um domínio da razão sobre o impulso à beber, mas a vitória de um impulso à moderação. 
Com base neste ponto, gostaríamos de apontar para uma interessante aproximação desta abordagem dos impulsos de Nietzsche com a dinâmica das paixões de David Hume (1711 – 1776). Em seu Tratado da natureza humana (1739/1740), Hume apresenta uma intricada dinâmica das paixões, contudo, uma análise desta sistemática em detalhe foge da proposta deste trabalho, de modo que apontaremos, de forma breve e geral, algumas características, julgadas por nós relevantes. Em primeiro lugar devemos ter em mente duas divisões independentes das paixões: elas podem ser fortes e fracas, na medida em que possuem maior ou menor influência causal no agir do sujeito; e podem ser calmas e violentas, de acordo com a sua turbulência e intensidade sentida. O ponto fundamental é que podemos ter uma paixão que é, ao mesmo tempo, calma e forte, ou seja, ela não possui a turbulência de uma paixão violenta, mas ainda sim é determinante na ação do sujeito, visto que sua implicação causal é forte.
Tal raciocínio está atrelado a uma interpretação da razão como incapaz de, por si só, determinar o agir humano. Segundo Hume não há conflito entre razão e paixões, devido ao fato de que a razão tem o secundário papel de buscar os meios adequados para alcançar os fins impostos pelas paixões. Daí sua célebre afirmação de que “A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (HUME, 2009, p. 451). Podemos notar como o pensador escocês se insurge contra a crença dos racionalistas na razão como protagonista do agir, bem como na existência de um conflito entre razão e paixões. Neste sentido é interessante o comentário de John Rawls:

Este importante parágrafo encerra a explicação de Hume do erro filosófico dos racionalistas: a saber, eles confundem e influência abrangente e forte das paixões calmas com as operações da razão. Recordemos que as paixões podem ser a um tempo fortes e calmas. Os racionalistas são iludidos pela ausência de turbulência ou violência no modo como essas paixões operam. Hume atribui um papel fundamental às paixões calmas, ao menos quando são fortes, o que por vezes se verifica. Sua influência se evidencia na maneira como elas regulam e controlam nossa deliberação e conduta (RAWLS,  2005, p. 37).

Tendo observado isto, gostaríamos de apresentar dois pontos convergentes entre Hume e Nietzsche: primeiro, é notável que ambos atribuam um papel secundário à razão, Hume a coloca como serva das paixões e Nietzsche a coloca como mais um impulso. Tal postura representa um rompimento com a noção tradicional de sujeito racional, a qual é assentada em uma metafísica da razão. Estes dois filósofos preferem depositar suas esperanças na esfera muito mais palpável e natural das pulsões humanas. Logo, ao invés de apresentarem o homem como separado do restante da natureza, pelo fato de possuir a centelha divina da razão, o veem como determinado pelo fluxo psico-fisiológico das pulsões.
O segundo ponto de convergência reside no fato de ambos os pensadores apresentarem pulsões suaves ou calmas, e, com isso, enfrentarem as dificuldades decorrentes de uma linguagem dotada de uma forte carga metafísica. É interessante notarmos como ambos, ao recusarem a dicotomia opositiva razão x impulsos/paixões, introduzem uma noção de pulsões não turbulentas, no caso de Hume as paixões calmas e no de Nietzsche os impulsos suaves; as quais possuem fundamental importância na pintura deste novo tipo de sujeito fragmentado em pulsões, pois afinal de contas são estas pulsões suaves que “tecem a trama de nosso caráter e nosso destino”. (Aurora: 115).   
Atualmente, a análise psicológica dos impulsos de Nietzsche e esses pontos de convergência com Hume estão servindo para propiciar um novo viés interpretativo de Nietzsche como um pensador naturalista. Temos hoje uma vasta e crescente bibliografia[2] sobre este viés, a qual vem sendo instigada por descobertas científicas, as quais, em não poucas vezes, estão confirmando as considerações nietzschianas. Acreditamos que o tratamento dos impulsos em Aurora é fundamental para esta nova proposta interpretativa, além dos pontos de convergência com Hume, os quais permitem, por exemplo, que Brian Leiter apresente Nietzsche como um naturalista metodológico especulativo (Naturalista-M), “isto é, um filósofo que, como Hume, deseja ‘construir teorias que sejam modeladas nas ciências (...) tomando delas a ideia de que os fenômenos naturais possuem causas determinísticas’”. (LEITER, 2011, p. 80). Até que ponto esta leitura é possível e se podemos compreender Nietzsche como um pensador que apresenta uma continuidade de resultados com a ciência é questão para uma próxima oportunidade, por hora nos basta apresentá-la e convidar o leitor para este debate.    
  
Obras Referidas

HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
LEITER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado. In: Cadernos Nietzsche, n. 29, São Paulo: 2011, p. 77 – 126.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
RAWLS, John. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005.


[1] A fundamentação da moral kantiana e a questão do fato da razão são questões de grande complexidade e que fogem do tema de nosso trabalho, de tal modo que aos interessados fica a indicação de leitura do texto da Professora Flávia Carvalho Chagas, disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/viewFile/7840/5761
[2] Algumas indicações neste sentido: LEITER, B. Routledge Philosophy - Guidebook to Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002. PRINZ, J. J.. The Emotion Construction of Morals. New York: Oxford University Press, 2007.

Leituras dos próximos encontros.

Trago os aforismos selecionados em nossa ultima reunião para serem estudados em nossos próximos encontros. Em função da paralisação ainda não temos a data precisa de quando retomaremos nossos estudos, porém a previsão é de que na segunda semana após o retorno das aulas conseguiremos dar sequência em nossos encontros. Mais detalhes serão oferecidos tanto aqui em nosso blog como em nosso grupo de e-mails assim que existir uma data mais segura.


Aproveito essa postagem para divulgar o grupo de e-mail de nosso grupo de estudos, basta clicar no link que será disponibilizado e fazer uma solicitação de participação para receber em seu e-mail nossos comunicados, a partir de agora farei a divulgação de novas postagens e repassarei informações importantes através do grupo de e-mails.


https://groups.google.com/d/forum/gen-ufpel


Ou mande um e-mail para: gen-ufpel@googlegroups.com

Caso possuam qualquer dúvida sobre o grupo de e-mails ou sobre o nosso grupo de estudos entrem em contato pelo seguinte e-mail: carol.drudi@hotmail.com


Próximas leituras:


449 - Onde estão os necessitados do espírito?
453 - Interregno moral.
455 - A primeira natureza.
456 - Uma virtude em devir.
457 - Silêncio derradeiro.
538 - Insânia moral do gênio.
539 - Vocês sabem o que querem?
547 - Os tiranos do espírito.
548 - A vitória sobre a força.
553 - Por rodeios.
560 - O que somos livres para fazer.
572 - A vida deve nos tranquilizar.
575 - Nós, aeronautas do espírito!


Boa leitura a todos e muito brevemente teremos novidades em nosso blog.