quarta-feira, 13 de junho de 2012

Aforismos 239 e 262

Reunião do dia 01 de Junho de 2012

Livro IV
Aforismo 239 - Indicação para moralistas
Em “O Nascimento da Tragédia a partir do espírito da Música” (1872) Nietzsche defende a tese de que existia nas peças do Ésquilo e de Sófocles um teatro grego verdadeiramente trágico e esse teatro era trágico porque tinha sempre à sua frente o Deus Dionísio. Nessa temática o filósofo passa a investigar o papel do coro na tragédia e narra que eles sempre estavam presentes como entusiastas dionisíacos inebriados pelo vinho que cantavam e dançavam em homenagem ao deus Dionísio. Tal teatro trágico estava diretamente vinculado à religião dionisíaca, o coro era dionisíaco e o espetáculo também, porém, depois de Ésquilo e Sófocles a tragédia perde o elemento dionisíaco e vai começar a se vincular, segundo a tese de Nietzsche, com o racionalismo socrático através de Eurípedes e passa a produzir mais “dramalhões”. É importante dizer que Wilamowitz-Moellendorff, sendo ele o maior tradutor de Eurípedes na Alemanha, discorda da tese de Nietzsche. Na sequência dos fatos vem o cristianismo e somente com o passar de 1500 anos a música começa a se libertar da religião. Nietzsche se depara com Richard Wagner e então o filósofo enxerga no compositor uma retomada e um resgate do dionisíaco, percebe que Wagner é capaz de ir ao fundo da cultura alemã e a partir de então é capaz de compor obras grandiosas.
Posteriormente Nietzsche rompe com Wagner e cada vez mais vai percebendo que se equivocou a respeito do compositor e que suas composições de dionisíacas não tinham nada, nem bebeu tanto quanto imaginava da alma do povo alemão e chega à conclusão de que Wagner era no fundo um cristão e, por conseguinte sua música era uma música decadente.
É válido lembrar que tal rompimento se dá em “Humano, demasiado humano” (1878), e a partir de então, em seus livros posteriores, ele narra sua visão de arte enquanto vinculada com a fisiologia. Em “Aurora” (1881) Nietzsche descreve que no ato da composição o compositor expõe sua própria alma e que essa mesma alma está cada vez menor e mais barata, logo, uma arte que esteja vinculada não com o todo, com a cultura, mas com o indivíduo, com a subjetividade e com o estado físico do criador ela pode ser fraca ou no mínimo frágil, ela vai ser imagem e semelhança do criador e se o criador é fraco a obra é fraca e o que Nietzsche descreve é que de fato a alma dos artistas está cada vez menor.
Vale lembrar que o próprio Nietzsche era compositor, produzindo mais de 300 obras, portanto ele conhecia muito bem o universo da música e ele escreve:
Oh, se nossos pensadores tivessem ouvidos para escutar dentro da alma de nossos compositores, mediante sua música! Quanto tempo será preciso esperar, até que se tenha novamente uma oportunidade como esta de flagrar o homem interior numa má ação e na inocência desta ação! Pois os nossos compositores não suspeitam minimamente que colocam em música a sua própria história, a história do enfeamento da alma. Antes o bom compositor era quase obrigado a tornar-se um bom homem por causa de sua arte – E agora!
                                
Indicações de leituras:

Mestre e Doutor em Filosofia pela UNICAMP, Wander Andrade de Paula, intitulado "Sócrates e a polêmica sobre o nascimento da tragédia".

Indico também o segundo capítulo do livro “Niilismo, Criação, Aniquilamento: Nietzsche e a filosofia dos extremos” do Prof. Dr. Clademir Araldi, “O artista trágico e a superação do pessimismo”.

Outros artigos que tratam do tema estudado são:

“ARALDI, C. L. .O conflito trágico entre arte e verdade no pensamento de Nietzsche. Revista Trágica: Estudos sobre Nietzsche  – 2º semestre de 2008 – Vol.1 – nº2 – pp.37-52”.

“ARALDI, C. L. .O pessimismo em O Nascimento da Tragédia de Nietzsche. Dissertatio (UFPel), Pelotas, v. 7, 1998”.

“ARALDI, C. L. . O simbolismo das criações apolíneas e dionisíacas. Uma análise crítica da estética do jovem Nietzsche. Reflexão (PUCCAMP), v. 1, p. 51-65, 2009”.

“ARALDI, C. L. . As criações do gênio - Ambivalências da"metafísica da arte" nietzschiana. Kriterion (UFMG. Impresso), v. L, p. 115-136, 2009”.

Aforismo 262 - O demônio do poder.
“Não é a necessidade, nem a cobiça – não, o demônio dos homens é o amor ao poder. Seja lhes dado tudo, saúde, alimento, habitação, distração – eles continuam sendo infelizes e caprichosos: pois o demônio insiste em esperar, ele quer ser satisfeito. Seja-lhes tirado tudo, mas satisfaça-se a ele: então serão felizes.” (AU §262).

Com essa passagem Nietzsche coloca bem a nossa frente a ânsia do ser humano pelo poder. Aqui está contido o germe do conceito de vontade de poder, dizendo que tal ânsia seria a motivação principal para todas as ações, tanto orgânicas quanto inorgânicas, ou seja, todo o cosmos almeja o poder. Quando nos referimos a cosmos temos a intenção de englobar tudo que existe, como por exemplo, a religião ou a política, porém, quando se trata de política tal posicionamento não é inusitado dentro da filosofia, basta recordarmos de Maquiavel.
Em Aurora Nietzsche coloca as forças existentes no cosmos como possuidoras de um movimento de conservar o poder já existente e o expandir, com isso ele enxerga a luta pelo poder desvinculada ao juízo de valor moral. Podemos notar até mesmo certo fatalismo, as coisas acontecem dessa forma e cabe a nós participar desse movimento.

Neste aforismo Nietzsche afirma a existência de pois tipos de poder. O primeiro, sendo exatamente criticado por Nietzsche e tido como negativo para a vida, visando o aniquilamento, a destruição de forma agressiva, tal comportamento geraria decadência e niilismo, se daria através do abuso do poder. O segundo, sendo o que nosso filósofo aponta como o comportamento mais positivo e benéfico ao ser humano, tem como meta um progresso pela superação de algo que nos é oposto, um poder em função da vida e do crescimento. Nietzsche trata novamente desse tema no prólogo de O Anticristo (1888) e escreve:

“O que é bom? – Tudo o que eleva o sentimento de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem.
O que é mau? – Tudo o que vem da fraqueza.
O que é felicidade? – O sentimento de que o poder cresce, de que uma resistência é superada.”

terça-feira, 5 de junho de 2012

A concepção de grande política em Humano, demasiado Humano e Aurora.


Autor: Sdnei Pestano

Nosso objetivo neste breve texto é observar o contexto no qual ocorrem as primeiras aparições do conceito de grande política. Dessa forma trabalharemos o período compreendido entre as obras Humano, Demasiado Humano (HH – 1878) e Aurora (A – 1881). Como consequência das conclusões almejadas, pretendemos desvincular essa noção do conceito propriamente dito de grande política, que é adotado pelo autor em seu período tardio.
Antes de entrar propriamente na análise em questão é necessário efetuar uma breve ressalva: partimos da pressuposição de que em Aurora e Humano não estão presentes os conceitos fundamentais para a grande política do período tardio, tais como vontade de poder e transvaloração.
Iniciemos a tratar desta noção na obra de 1878. A ela é dedicado apenas um aforismo, denominado A grande política e suas perdas (Grosse Politik und ihre Einbussen), no qual o autor descreve as consequências prejudiciais das guerras. O verdadeiro tributo pago por um povo em uma guerra é a perda das individualidades mais talentosas. Neste contexto, o autor afirma:

“um povo que se dispõe a praticar a grande política e a garantir uma voz entre os Estados mais poderosos não experimenta suas maiores perdas onde geralmente as encontramos. É verdade que a partir desse momento ele sacrifica muitos dos talentos mais eminentes no “altar da pátria” ou da ambição nacional, quando previamente, antes de serem devorados pela política, esses talentos tinham outras esferas de ação diante de si.” (HH, §481).

A grande política significa uma política que pretende ir além dos domínios territoriais de um Estado ou de uma Nação. O que está em jogo é se vale a pena sacrificar em nome desta política, que em última instância resulta na guerra, as maiores individualidades de um povo. Nietzsche observa que, com o aumento do sentimento de poder coletivo, desejado por um Estado expansionista, há também a eliminação da possibilidade de existência dos rebentos mais nobres de um povo.
Devemos perceber que neste aforismo o filósofo errante não nos fornece uma resposta a sua pergunta. A resposta que encontramos está no aforismo 477, no qual a guerra é entendida como fomentadora e renovadora da energia de um povo:

“por enquanto não conhecemos outro meio que pudesse transmitir a povos extenuados a rude energia do acampamento militar, o ódio profundo e impessoal, o sangue-frio de quem mata com boa consciência, o ardor comum em organizar a destruição do inimigo, a orgulhosa indiferença ante as grandes perdas, ante a própria existência e a dos inimigos, o surdo abalo sísmico das almas, de maneira tão forte e segura como faz toda grande guerra: os regatos e torrentes que nela irrompem, embora arrastem pedras e imundícies de toda espécie e arrasem campos de tenras culturas, em circunstâncias favoráveis farão depois girar, com nova energia, as engrenagens da oficina do espírito” (HH, §477).
Neste contexto a guerra seria um mal capaz de permitir que uma cultura desgastada renove suas forças. Isso não significa defender que Nietzsche seja um mero entusiasta da guerra. Devemos prestar atenção nas nuances do texto citado. Primeiramente, o autor afirma que a guerra está no cerne das grandes culturas e que ela é capaz, somente quando há condições favoráveis, de garantir não apenas a renovação de uma cultura, mas também a sua própria existência; em última instância, “dela o homem sai mais forte, para o bem e para o mal” (HH, §444). Não se trata de uma apologia, mas sim de uma descrição da possibilidade do fenômeno guerra. Ela é descrita na obra em seus aspectos positivos e negativos para a cultura e para os indivíduos. Defendemos assim, que não há uma contradição. Nietzsche está descrevendo o mesmo fenômeno através de perspectivas diferentes.
Em Aurora, o impulso mais forte que impele à grande política é “a necessidade do desenvolvimento do poder” (A, §189). Tal sentimento aflora de todas as camadas sociais de um povo:

“então os sentimentos esbanjadores, sacrificadores, esperançosos, confiantes, fantasiosos, mais-que-temerários, emanam em tal profusão que um príncipe ambicioso ou astutamente precavido pode deslanchar uma guerra e atribuir seu crime à boa consciência de um povo” (A, §189).

No cerne desse sentimento de poder está a capacidade de atribuir a si próprio aquilo que é bom. Através dele é possível realizar atos que agora são entendidos como benéficos, mas que, no entanto, antes eram vistos como criminosos e cruéis. Isto porque não é apenas ao príncipe que esse acúmulo de poder é atribuído, mas também ao povo. Podemos interpretar aqui o primeiro passo para o modo nobre de valoração. Estes indivíduos concebem a si mesmos o direito de atribuir àquilo que fazem a qualidade de bom.
Podemos agora traçar um paralelo no que se refere à noção de grande política nas duas obras. Em ambas, a grande política está estreitamente relacionada à guerra. Porém, no primeiro texto trabalhado, a guerra é vista como um subterfúgio para uma cultura desgastada, enquanto na última ela é vista como consequência do acúmulo do sentimento de poder. Devemos destacar que, em nenhum dos casos, Nietzsche está afirmando algo vindouro, assim como ele fará no período tardio, mas sim algo presente na própria história e que não pode ser retirado completamente da vida.
Em nossa perspectiva não é possível falar de uma grande política do espírito livre referindo-se ao período compreendido pelas duas obras. Num póstumo de 1876-78, Nietzsche ressalta o desinteresse necessário ao espírito livre no que concerne à política:

“Die 10 Gebote des Freigeistes.
(...)
Du sollst keine Politik treiben”.[1]
Concluímos, então, que Nietzsche não possui, nem mesmo de forma latente, a noção de grande política do período tardio. Por mais que aceitemos que a postura do espírito livre, enquanto inoculador de algo novo, na sociedade decadente dos espíritos cativos, possa ter uma consequência política, estamos muito distantes de uma proposta política como a que será observada no período tardio[2].
Karl Löwith nos fornecesse uma reflexão muito cara ao nosso tema quando comenta o aforismo 190 de Aurora:

“para él [Nietzsche] el Estado de Bismarck constituía la “extirpación alemán en favor del Imperio de Alemania”. El mismo Bismarck había sido “membro de uma asociación estudantil” y su “era” regía como la época de la “estupidez alemana”. Bismarck estrechó el espírito de Alemania, convirtiéndolo en espíritu nacional; obligó a que los alemanes se dedicaran a la gran política. De esse modo los gravó com un formidable império y poderio, por cuyo motivo el Pueblo alemán sacrificó sus antiguas virtudes” (2008, p.393-394).

Esta concepção de grande política pode ser exemplificada na guerra franco-prussiana de 1870, na qual o próprio Nietzsche participou como enfermeiro. Nela o filósofo percebeu as perdas que uma guerra de tal proporção pode acarretar. Para reforçar nossa hipótese, recorremos a um póstumo de 1880-1881:

“faço abstração do interesse e da vaidade dos indivíduos e dos povos: mas a necessidade de sentir em si um poder, de deixá-lo brotar dos sentimentos de prodigalidade, da aceitação do sacrifício, da fantasia imaginativa – isto é o que conduz a grande política como um transbordamento de águas poderosas. Age-se então contra o seu interesse, contra a sua vaidade [pois se está talvez obrigado a realizar as tarefas servis para assegurar à nação o seu sentimento de poder, e a colocar em risco sua vida, riqueza, honra] [virtude]” (IV 4[247]428).[3]

De forma alguma poderíamos pensar a grande política do período tardio apoiada em uma subserviência do indivíduo ao sentimento de poder da massa. Nietzsche está trabalhando com o desprendimento do indivíduo em relação a si próprio quando ele é tomado por um sentimento de poder que o massifica. É através desta massificação de si que o indivíduo sente o aumento de poder. Em nome deste sentimento é que a “massa está disposta a empenhar sua vida, seus bens, sua consciência, sua virtude, para dar a si mesma tal fruição suprema e, como nação vitoriosa, tiranicamente arbitrária, dominar as outras nações” (A, §189).
Não abordamos a questão de como Nietzsche entende a grande política em seu período tardio, porém pensamos ter demarcado bem a noção de grande política nas obras em que nos propomos trabalhar. Reforçamos que, em ambas as obras, uma determinada postura política está sendo descrita, e que o termo não pode ser analisado com vistas a dar uma definição de uma possível proposta política de Nietzsche no período intermediário.

Referências Bibliográficas (Básicas):
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das letras, 2004;
LÖWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: la quebra revolucionaria del pensamento en el siglo XIX. Buenos Aires: Katz editores, 2008.



[1] “Os 10 mandamentos do espírito livre: tu não deves fomentar nenhuma política” (Trad. nossa).
[2] Poderíamos ainda nos perguntar se os espíritos livres são capazes de fomentar no campo individual aquilo que a grande política e a guerra são capazes, por que então Nietzsche nos coloca diante da difícil pergunta do aforismo 481 de Humano?
[3] Trad. de Noéli Correa de Melo Sobrinho.