terça-feira, 16 de julho de 2013

A Gaia Ciência §1 - Os mestres da finalidade da existência

O Enterro do Conde de Orgaz - El Greco

No encontro do GEN-UFPel do dia 24 de maio de 2013 foi dado o início ao estudo da obra A gaia ciência (1882) com a leitura e discussão do primeiro aforismo do Livro I, Os mestres da finalidade da existência. Este inicia com a afirmação de Nietzsche de que observa em todos os seres humanos o trabalho para a conservação da espécie, entendido não como motivado por um amor à espécie, mas enquanto o mais forte instinto nos homens. Este instinto seria “precisamente a essência da linhagem e rebanho que somos”, ou seja, estaria inerente em todos nós.
Ao advogar a tese de que um instinto inexorável, que direciona os homens à conservação da linhagem, está presente em toda a espécie, Nietzsche faz também uma crítica à divisão estanque das pessoas entre úteis e nocivas, pois até “a pessoa mais nociva pode ser a mais útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém em si ou, por sua influência, em outras, impulsos sem os quais a humanidade teria há muito se estiolado ou corrompido”. Desta forma, também tudo aquilo que se chama de mau (como a ânsia de rapina e domínio) seria parte de uma “assombrosa economia da conservação da espécie”, economia esta que, segundo Nietzsche, conservou a nossa estirpe.  Não haveria, então, ações boas ou más na medida em que de qualquer forma tais ações resultariam na conservação da espécie.
Nessa economia global da conservação da espécie, o peso da existência do sujeito deixa de ser tão forte, de modo que Nietzsche sugere que se siga “os seus melhores ou os seus piores desejos e, sobretudo, pereça!”, pois afinal não importaria o tipo do desejo, posto que, de qualquer forma, o seu leitor seria “benfeitor da humanidade”.  Com isso, Nietzsche está afirmando que o indivíduo visto da perspectiva da espécie não teria relevância, ou seja, que não haveria diferença para a continuidade da linhagem se o indivíduo adotou uma postura moral ou outra.
No entanto, ainda não teriam surgido aqueles capazes de rir inclusive das melhores características dos outros e de si mesmos, evidenciando sua “ilimitada miséria de rã e de mosca”, ou seja, sua insignificância num quadro geral da humanidade inscrita na história. Com isto, fica claro que ainda não se percebeu esta “verdade”, e também que sequer os melhores tiveram essa percepção, não tendo sido por isso capazes de rir de si mesmos.
Para Nietzsche, o riso só teria futuro a partir do momento em que a tese “a espécie é tudo, o indivíduo, nada” fosse incorporada à humanidade, abrindo-se o acesso a uma libertação e irresponsabilidade, de tal forma que “talvez o riso tenha se aliado à sabedoria, talvez haja apenas gaia ciência”. Contudo, Nietzsche diagnostica que no seu presente há uma tragédia, referente ao fato desse ser o “tempo das morais e religiões”. Com isto, o filósofo alemão se pergunta o que significa o aparecimento sempre renovado dos fundadores destas morais e religiões, dos incitadores da luta pelas avaliações morais e dos mestres dos remorsos e das guerras religiosas. Seguindo o contexto do termo tragédia, descreve esses como os “heróis num palco”, e coloca os poetas, por exemplo, como aqueles que sempre foram “camareiros de alguma moral”. Reiterando a sua tese de que todos trabalham para a conservação da espécie, movidos pelo mais forte dos impulsos; Nietzsche afirma que estes heróis também o fazem, ainda que pensem estar a serviço de Deus, eles, em verdade, “promovem a vida da espécie, ao promover a fé na vida”.
Tal impulso de conservação surgiria ocasionalmente como razão e paixão do espírito, trazendo motivos e querendo fazer esquecer que é impulso, ou seja, ausência de motivos. Isto seria efetuado através dos mestres da ética enquanto mestres da finalidade da existência. Estes seriam aqueles que dão sentido ao que não tem sentido, ou seja, as coisas que ocorrem necessariamente e por si, e que são explicadas por eles enquanto tendo sido feitas para uma finalidade, enquanto razão. Para isso, esse mestre da ética inventa uma segunda existência[3], pois esse mundo não possuiria sentido imanente, sendo necessário recorrer a algo fora dele. E também para eles não haveria espécie, posto o indivíduo ser algo primordial.
Contudo, Nietzsche argumenta que sempre que surgem tais éticas, essas são vencidas pelo tempo: “a breve tragédia sempre passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir”, sendo esta comédia do existir aquela que traz um riso corretor. Apesar disso, no entanto, Nietzsche entende que houve uma modificação da natureza humana, pois haveria surgido uma nova necessidade, a saber, justamente a de que apareçam renovadamente tais mestres e doutrinas da finalidade. Esta necessidade seria referente à condição existencial de o homem ter de acreditar ocasionalmente saber a razão de sua existência.
Resumo efetuado por José Luiz Votto