quinta-feira, 25 de julho de 2013

Relato da reunião do dia 19/07/2013 sobre A Gaia Ciência §57 e §58

Retrato de Mademoiselle Caroline Rivière - Ingres (1806)
No encontro do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel do dia 19 de julho de 2013, deu-se início ao estudo do Livro II de A gaia ciência (1882) através da leitura e discussão dos aforismos §57 (“Aos realistas”) e §58 (“Somente enquanto criadores!”). 
Quanto ao aforismo §57, após sua leitura, foi destacado que nesta obra e, em especial, no Livro II, encontramos intensos diálogos com a arte. No entanto, também foi levantada a especulação de que ao falar de “realistas”, Nietzsche esteja se referindo à ciência mecanicista do século XIX, que se entendia enquanto isenta de paixões na sua prática, ou seja, que acreditava num acesso direto à realidade para o estabelecimento do conhecimento.  Portanto, Nietzsche se dirige a tais realistas como “queridas imagens de Sais”, numa referência à obra de Schiller em que um jovem egípcio busca a verdade e quando a descobre é acometido por algo ruim. Seria identificável, de tal forma, uma postura prepotente da ciência quando esta pensa ver a realidade do mundo como nunca se viu antes, fundando-se, por exemplo, numa confiança em seu rigoroso método. Ou seja, como se suas descrições do mundo estivessem isentas de qualquer cunho humano, como se não fossem baseadas em avaliações, fundadas em paixões humanas. E o que Nietzsche argumenta no aforismo é que estes “realistas” baseiam-se em avaliações ultrapassadas, oriundas de paixões de séculos passados.
Também foi apontado, durante a reunião, que encontramos neste período da obra do filósofo alemão a defesa de uma postura que continuará a ser apresentada até o seu período maduro, qual seja, a de que o importante para Nietzsche não será observar uma ciência ou um sistema filosófico analisando internamente seus dogmas ou conceitos, mas buscando quais impulsos estão subjacentes a estes. Assim, quando se fala em “buscar a verdade” numa ciência, por exemplo, o importante é entender quais os interesses estão ocultos nesta dita busca. Como forma de problematizar a questão, também foi ressaltado que a matemática surge como um forte instrumento para fundamentar a legitimação de tal realismo, justamente por servir de forte apelo retórico para formar uma visão do conhecimento como algo frio, sem qualquer interferência subjetiva.
Também foi questionado como compreender o estatuto da ciência, para Nietzsche, nesta relação entre a arte e o saber jovial, na medida em que o filósofo nega o seu caráter absoluto. Foi colocado, então, que o posicionamento de Nietzsche é relativo ao perspectivismo, entendido enquanto intermediário entre a posição radical de um dogmatismo e o relativismo, tendo em vista que para este último todas as posições possuem o mesmo valor, enquanto que para Nietzsche as coisas possuem valores diferentes.
Por fim, observou-se que o uso do termo “embriaguez” no aforismo refere-se a um estado da modernidade, e que os “homens sóbrios” seriam aqueles que também estariam embriagados, mas, no entanto, sem perceber sua embriaguez, enquanto Nietzsche aponta para outra perspectiva de “boa vontade em ultrapassar a embriaguez”. 
Após tais discussões, seguiu-se a leitura do aforismo §58, “Somente enquanto criadores!”. Nietzsche inicia tal aforismo apontando que lhe é mais importante compreender como as coisas se chamam do que aquilo que elas são, ao que durante a discussão relacionou-se com uma posição nominalista do debate dos universais, em que encontramos a diferença entre a essência e os nomes. Isto estaria ligado com o fato de, para Nietzsche, não haver uma realidade universal acessível sem avaliações. O filósofo entenderia, assim, que de uma postura inicial de fixação de nomes redundou-se em um essencialismo. Ou seja, a fixação dos nomes, dos pesos e medidas e do modo como as coisas são vistas “gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo”: a aparência torna-se essência e atua como essência.

Por fim, foi especulado que novamente Nietzsche poderia estar criticando a ciência na medida em que apresenta uma nova proposta, a saber, a de que para destruir faz-se necessário criar algo novo. Com isso, estaria apontando o erro da ciência em acreditar que quando se desse a revelação das coisas verdadeiras, todas as interpretações anteriores estariam destruídas e descartadas enquanto errôneas, estando assim também fixado um futuro baseado em tais “verdades”. 

Sobre a imagem[1]:
Jean Auguste Dominique Ingres foi um conhecido pintor neoclassicista, considerado o último representante dos devotos às tradições da arte. Não por acaso, era reconhecido retratista (seu gênero favorito). Em seus quadros, acreditava captar e transmitir perfeitamente a essência do modelo sobre o qual se debruçava, através de uma "pureza linear". Dizia que conseguia fazê-lo de forma ainda mais excelente se almoçasse com o modelo ou pudesse fazer qualquer outra atividade que os descontraísse e aflorasse "as expressões naturais" da pessoa.
Algumas de suas obras não foram reconhecidas pela academia (ainda muito rigorosa nessa época) que lhe recomendava "estudar mais os clássicos", porém sem incorrer em arcaísmos, como às vezes fazia. Devido à sua paixão pelo ideal grego, chegava até mesmo a distorcer suas modelos na tela, a fim de "aprimorá-las". Como diz Giulio Carlo Argan explicando Canova (o fundador do belo ideal dessa época, porém fazendo-o majoritariamente através da escultura - o que só vem a nos mostrar a esmagadora influência dos gregos neste período), o belo ideal estava na figura ou, mais precisamente, no sublimar-se da figura até identificar-se com a ideia transcendental do belo. Ingres não admitia suas tendências de excessiva idealização que o levavam a distorcer forma e espaço – o que podemos entender como “a natureza corrigida pela arte”; tanto que se opôs veemente ao Romantismo que aflorava em sua época (com Delacroix, principalmente). No entanto foram justamente os adeptos deste movimento que souberam reconhecer seu valor, e não a academia a quem tanto respeitava.
O que vemos, então, é um artista que aperfeiçoa obsessivamente a técnica, produz em uma tela uma espécie de "fotografia idealizada" do modelo. É tão devoto às diretrizes da tradição clássica que distorce seu mundo a fim de segui-las. Ingres é um grego artificial e, junto de sua personalidade, carrega inovações que mais tarde servirão de inspiração para artistas Modernos como Picasso e Matisse, que estão longe de dobrarem-se às tradições. Ingres incorreu, em seu discurso, a uma autoenganação de que era inteiramente ortodoxo. Inebriado por sua paixão, apenas podia acreditar-se neoclassicista.



[1] Seleção e contextualização da imagem desenvolvidas por Luísa Caroline da Silveira Pogozelski.

terça-feira, 16 de julho de 2013

A Gaia Ciência §11 – A consciência

Igor Morski - Enpundit

Nietzsche inicia o aforismo traçando considerações sobre o desenvolvimento orgânico da consciência e, ao fazê-lo, a entende como último elemento desenvolvido no homem; não para apresentá-la como ápice e ponto culminante da evolução, como faria uma interpretação darwinista, mas apontando justamente para seu caráter inacabado e “menos forte”. Com efeito, essa consciência inacabada leva a erros que podem conduzir a humanidade à destruição, o que somente não ocorreu em virtude do “vínculo dos instintos”.

Como a consciência não está matura, ela é um perigo para o organismo de modo que a tirania sobre ela possui um aspecto positivo: o homem não procurou mais por ela e, de alguma forma, estagnou o seu possível desenvolvimento acelerado. O curioso é que foi justamente essa tirania – má compreensão e orgulho do homem com relação à consciência, tomando-a por grandeza dada, por faculdade acabada e crendo nela repousar a essência do organismo – que desacelerou os seus erros, permitindo a, ainda embrionária: “tarefa de incorporar o saber e torná-lo instintivo”.

A Gaia Ciência §2 - A consciência intelectual

"A solidão no alvorecer" por Johann Heinrich Füssli

Neste aforismo, Nietzsche questiona as formas com que as pessoas se relacionam com as suas crenças. Enquanto por uma via há aqueles que possuem crenças mesmo sem fornecer as razões para elas; por outro lado há a via da suspeita. Sendo assim, Nietzsche inicia o aforismo argumentando que embora não queira acreditar naquilo que sua experiência lhe mostra como evidente, a saber, que “a grande maioria das pessoas não tem consciência intelectual”, tal observação é palpável demais para que consiga se rebelar contra ela. O filósofo alemão diagnostica que aqueles que consideram necessária tal consciência, e a exigem dos outros, encontram-se solitários, ainda que rodeados de pessoas, como nas cidades populosas, já que não há pares nessa sua exigência no trato com as crenças.
Nietzsche também aponta que não só as pessoas são desprovidas da referida consciência intelectual, como também são indiferentes àqueles que as alertam a respeito disso. Portanto, a indiferença das pessoas frente a este questionador funciona como um agravante ao deserto da sua solidão. Isto porque a indiferença se apresenta como a ausência de oposição, ou seja, sequer existe uma tensão, uma forma de interação com o questionador, ainda que de conflito. Logo, aquele que aponta que a forma de valorar das pessoas possa estar sendo injusta não recebe como retorno sequer indignação, e quando muito a reação será a de uma risada sobre a sua dúvida.
         Assim, a consciência intelectual está diretamente ligada à suspeita, à dúvida. Para Nietzsche, a grande maioria (o que incluiria “os mais talentosos homens e as mais nobres mulheres”) sequer duvida de suas crenças, não vê o problema que é estabelecer seus valores sem uma ponderação racional: “a grande maioria não acha desprezível acreditar isso ou aquilo e viver conforme tal crença, sem antes haver se tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou contra ela, e sem mesmo se preocupar depois com tais razões”. Assim, por melhor que seja alguém, por mais que seja dotado de “bondade, finura e gênio”, ainda seria um ser inferior, posto que de nada adianta tais virtudes se tal pessoa tolera em si mesma “sentimentos frouxos ao crer e julgar”, ou seja, se esta pessoa é leviana quanto ao que acredita e não tem a necessidade de buscar a certeza, o que caracteriza os homens superiores e os diferencia dos inferiores. 

         Até no piedoso, personagem que Nietzsche não admira, o filósofo identifica um ponto que nos melhores homens e mulheres não encontrou: este tem ódio à razão, o que seria uma tomada de posição frente à consciência intelectual, rejeitando-a, o que difere daqueles que são simplesmente indiferentes à ela. O que é desprezível para Nietzsche é estar diante de “toda a maravilhosa incerteza e ambigüidade da existência” e não se posicionar, nem interrogar e nem ter ódio por quem interroga, como o piedoso. Nietzsche aponta, então, que o que procura primeiramente nas pessoas é a percepção do quanto isto é desprezível, e argumenta que “algum desatino está sempre a me convencer de que todo ser humano tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de injustiça”. Ou seja, está sendo injusto na medida em que pensa que todos tem tal percepção, o que está relacionado com o aforismo seguinte, §3: Nobre e Vulgar, em que escreve sobre a “eterna injustiça dos nobres”. Tal injustiça significa que os nobres consideram sua idiossincrasia do gosto necessária a todos, afirmam posições novas partindo desta sua idiossincrasia, o que só é possível na medida em que estes não sentem a si mesmos como naturezas excepcionais.
Resumo efetuado por José Luiz Votto 

A Gaia Ciência §1 - Os mestres da finalidade da existência

O Enterro do Conde de Orgaz - El Greco

No encontro do GEN-UFPel do dia 24 de maio de 2013 foi dado o início ao estudo da obra A gaia ciência (1882) com a leitura e discussão do primeiro aforismo do Livro I, Os mestres da finalidade da existência. Este inicia com a afirmação de Nietzsche de que observa em todos os seres humanos o trabalho para a conservação da espécie, entendido não como motivado por um amor à espécie, mas enquanto o mais forte instinto nos homens. Este instinto seria “precisamente a essência da linhagem e rebanho que somos”, ou seja, estaria inerente em todos nós.
Ao advogar a tese de que um instinto inexorável, que direciona os homens à conservação da linhagem, está presente em toda a espécie, Nietzsche faz também uma crítica à divisão estanque das pessoas entre úteis e nocivas, pois até “a pessoa mais nociva pode ser a mais útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém em si ou, por sua influência, em outras, impulsos sem os quais a humanidade teria há muito se estiolado ou corrompido”. Desta forma, também tudo aquilo que se chama de mau (como a ânsia de rapina e domínio) seria parte de uma “assombrosa economia da conservação da espécie”, economia esta que, segundo Nietzsche, conservou a nossa estirpe.  Não haveria, então, ações boas ou más na medida em que de qualquer forma tais ações resultariam na conservação da espécie.
Nessa economia global da conservação da espécie, o peso da existência do sujeito deixa de ser tão forte, de modo que Nietzsche sugere que se siga “os seus melhores ou os seus piores desejos e, sobretudo, pereça!”, pois afinal não importaria o tipo do desejo, posto que, de qualquer forma, o seu leitor seria “benfeitor da humanidade”.  Com isso, Nietzsche está afirmando que o indivíduo visto da perspectiva da espécie não teria relevância, ou seja, que não haveria diferença para a continuidade da linhagem se o indivíduo adotou uma postura moral ou outra.
No entanto, ainda não teriam surgido aqueles capazes de rir inclusive das melhores características dos outros e de si mesmos, evidenciando sua “ilimitada miséria de rã e de mosca”, ou seja, sua insignificância num quadro geral da humanidade inscrita na história. Com isto, fica claro que ainda não se percebeu esta “verdade”, e também que sequer os melhores tiveram essa percepção, não tendo sido por isso capazes de rir de si mesmos.
Para Nietzsche, o riso só teria futuro a partir do momento em que a tese “a espécie é tudo, o indivíduo, nada” fosse incorporada à humanidade, abrindo-se o acesso a uma libertação e irresponsabilidade, de tal forma que “talvez o riso tenha se aliado à sabedoria, talvez haja apenas gaia ciência”. Contudo, Nietzsche diagnostica que no seu presente há uma tragédia, referente ao fato desse ser o “tempo das morais e religiões”. Com isto, o filósofo alemão se pergunta o que significa o aparecimento sempre renovado dos fundadores destas morais e religiões, dos incitadores da luta pelas avaliações morais e dos mestres dos remorsos e das guerras religiosas. Seguindo o contexto do termo tragédia, descreve esses como os “heróis num palco”, e coloca os poetas, por exemplo, como aqueles que sempre foram “camareiros de alguma moral”. Reiterando a sua tese de que todos trabalham para a conservação da espécie, movidos pelo mais forte dos impulsos; Nietzsche afirma que estes heróis também o fazem, ainda que pensem estar a serviço de Deus, eles, em verdade, “promovem a vida da espécie, ao promover a fé na vida”.
Tal impulso de conservação surgiria ocasionalmente como razão e paixão do espírito, trazendo motivos e querendo fazer esquecer que é impulso, ou seja, ausência de motivos. Isto seria efetuado através dos mestres da ética enquanto mestres da finalidade da existência. Estes seriam aqueles que dão sentido ao que não tem sentido, ou seja, as coisas que ocorrem necessariamente e por si, e que são explicadas por eles enquanto tendo sido feitas para uma finalidade, enquanto razão. Para isso, esse mestre da ética inventa uma segunda existência[3], pois esse mundo não possuiria sentido imanente, sendo necessário recorrer a algo fora dele. E também para eles não haveria espécie, posto o indivíduo ser algo primordial.
Contudo, Nietzsche argumenta que sempre que surgem tais éticas, essas são vencidas pelo tempo: “a breve tragédia sempre passou e retrocedeu afinal à eterna comédia do existir”, sendo esta comédia do existir aquela que traz um riso corretor. Apesar disso, no entanto, Nietzsche entende que houve uma modificação da natureza humana, pois haveria surgido uma nova necessidade, a saber, justamente a de que apareçam renovadamente tais mestres e doutrinas da finalidade. Esta necessidade seria referente à condição existencial de o homem ter de acreditar ocasionalmente saber a razão de sua existência.
Resumo efetuado por José Luiz Votto