A Gaia Ciência §2
Nietzsche
inicia o segundo aforismo de seu prólogo (1886) para a obra A Gaia Ciência (1882)
abordando a relevância da sua saúde na criação de sua filosofia. Dado que no
aforismo anterior o filósofo apresentava o período em que surge o livro que
introduz com este texto – e atribuía a ele um caráter de esperança renovada e
embriaguez da convalescença –, questiona-se sobre o “que temos nós com o fato
de o sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?”. Assim, se coloca em terceira
pessoa: seria este Nietzsche do texto aquele de 1882 ou o de 1886? Fica claro,
aqui, que Nietzsche vê o ser humano, e no caso a si mesmo, como algo fugaz, que
está em um constante processo de modificação, e que, ao escrever sobre suas
obras passadas, é como se estivesse lendo outro autor, com outra saúde. A
relação entre filosofia e saúde está inscrita entre as questões mais atraentes
para um psicólogo, alega o filósofo, tendo em vista que “desde que se é uma
pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa”.
Com isto, Nietzsche assume a inevitável pessoalidade da
filosofia, algo que nos remete à obra Além
do bem e do mal, escrita no mesmo ano dos prólogos, em que considera toda
filosofia como sendo a confissão de seu autor. Esta perspectiva da filosofia
como algo pessoal também remete ao período em que Nietzsche viveu, a saber, de
uma efervescência das possibilidades abertas pela ciência à filosofia – como,
por exemplo, de entender o comportamento a partir de estudos científicos. Nietzsche
continua sua argumentação no prólogo apresentando duas formas de origem da
filosofia: a primeira, em que as deficiências filosofam, e a segunda, em que as
riquezas e forças o fazem. Refere-se aos autores da primeira forma de filosofia
como aqueles que necessitam da sua filosofia, “seja como apoio, tranqüilização,
medicamento, redenção, elevação, alheamento de si”, e aos da segunda forma como
aqueles para os quais a filosofia é apenas um luxo, ou “no melhor dos casos a
volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com
maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos”.
Tem-se aqui claramente um dos pontos mais marcantes para
uma leitura naturalista de Nietzsche, a saber, da indissociabilidade entre alma
e corpo, não sendo possível desta maneira se pensar uma alma imortal desligada
do corpo mortal. Com isso, surgem alguns possíveis questionamentos com relação
a esta perspectiva nietzschiana: até que ponto a fisiologia influencia na
“alma”? Os pensamentos seriam completamente influenciados pelo corpo? A
supremacia seria do corpo, ou do espírito? Tal perspectiva também poderia
acarretar um problema grande como o do perigo de se cair em uma eugenia. No
entanto, o próprio prefácio daria um argumento contra uma crítica neste
sentido, pois como veremos no §3, para Nietzsche há uma necessidade da doença,
na medida em que esta traz um aprofundamento
daquele que a sofre. De sorte que a doença surge como algo que pode trazer
contribuições à filosofia, mas sendo importante que esta supere a doença.
Ainda que a filosofia possa surgir da doença, mas também
da força, Nietzsche diagnostica que talvez a maior parte dos pensadores da
história da filosofia tenham construído seus pensamentos baseados em suas
crises. Surgiria, desta forma, o questionamento das conseqüências para o pensamento
de uma tal sujeição da filosofia à doença. Para Nietzsche, o corpo doente
impeliria o espírito ao sossego, brandura, remédio, e conclui assim que:
Toda filosofia
que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende negativamente o conceito
de felicidade, toda metafísica e física que conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio
predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora,
permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo.
Com isto,
Nietzsche está criticando uma má-compreensão do corpo, fundada em um
“inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da
objetividade”, que pode ser encontrada na filosofia metafísica. Para o
historiador e psicólogo, as “insânias da metafísica” seriam preciosas
indicações, sintomas do êxito ou fracasso do corpo. Por fim, encerra o aforismo
apontando para a expectativa de que um médico
filosófico (aquele que se dedicaria à saúde de um povo, época, raça ou
mesmo da humanidade) algum dia pudesse afirmar a suspeita de Nietzsche de que o
filosofar não teria suas questões voltadas à busca da “verdade”, mas sim à
saúde, futuro e, numa clara referência à vontade de poder, para o “poder,
crescimento, vida”.
A Gaia Ciência §3
No
terceiro aforismo de seu prólogo, Nietzsche ressalta que não é ingrato em
relação ao período de doença pelo qual passou. Segundo ele, a instabilidade de
sua saúde lhe trazia vantagens que outros que gozavam de força não teriam como alcançar.
Assim, se tornaria questionável se a doença era realmente dispensável “para
nós”. A grande dor seria o liberador do espírito, enquanto mestre da grande
suspeita. Isto quer dizer que a dor desligaria os pensadores de sua confiança,
de “tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade”. De tal maneira, a dor
ocasionaria o aprofundamento (algo
que Nietzsche entende como diferente de aperfeiçoamento), pois a ela é possível
que se oponha o orgulho ou diante dela se gere um retiro para o “Nada oriental
– denominado Nirvana –, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se,
apagar-se”. Estes exercícios sobre si mesmo nos levam à questão de como dominar
a si próprio e ainda interrogar-se? E em relação ao perspectivismo
nietzschiano, como manter o ponto de interrogação e ainda ter o domínio sobre
si? Nietzsche entende que, após o período de doença, se perde a confiança na
vida, tendo esta mesma se tornado um problema, dado que passa a ser questionada
“profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente”. No
entanto, o amor à vida ainda é possível, como “o amor a uma mulher da qual se
duvida”.
Haveria,
assim, uma arte da transfiguração, que seria a própria filosofia, associada à
vida de um filósofo que percorreu diversos estados de saúde, em que seu estado
é transposto, a cada vez, “para a mais espiritual forma e distância”. A
filosofia, então, nada teria a ver com algum acesso direto ao verdadeiro, mas
de colocar a própria vida em forma de pensamento, não sendo assim possível uma
distinção entre corpo e alma ou entre alma e espírito:
(...) não
somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de
continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes
maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento,
consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para
nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o
que nos atinge; não podemos agir de
outro modo.
Encontramos aqui, portanto, um aspecto da filosofia
entendida como aliada à fisiologia, na medida em que a filosofia seria escrita
com o sangue. Nota-se também que Nietzsche se refere ao leitor como se este
fosse também um filósofo. Há uma preocupação nos prólogos de 1886 que é a de
definir o seu leitor ideal, aquele que estivesse capacitado à leitura de sua
obra. Neste sentido, pode-se entender que a sua linguagem metafórica também
seria uma forma de selecionar aquele leitor que Nietzsche desejava ter, o que
tivesse vivências como as suas.
A Gaia Ciência §4
Como forma
de encerrar o último dos prólogos escritos para suas obras anteriores,
Nietzsche aponta novamente para o retorno da enfermidade. Quando fala de cura,
está se referindo a uma cura num âmbito maior do que a doença de um corpo no
sentido específico, a saber, da cura da humanidade. Entende esse retorno da
enfermidade em que “voltamos renascidos (...)
mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria”, como a origem de uma nova
forma de lidar com a vida, com mais inocência, mas também marcada por um
refinamento.
Neste sentido,
é crítico do romantismo, e também do romantismo do conhecimento, pois “fere os
ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse
romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora”. Assim,
entende que há a necessidade de outra arte, oposta ao romantismo: uma arte para
artistas, que seja “ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente
artificial”, sugerindo um retorno aos gregos. Estes, na leitura de Nietzsche,
adoravam a aparência, permaneciam na superfície: “eram superficiais – por profundidade”, sendo requerido para
isto uma jovialidade, um aprendizado do esquecimento, do não-saber.
O que
Nietzsche sugere é que estas pessoas profundas, entre as quais se inclui e
também ao seu leitor, não procurarão mais desvelar aquilo que por boas razões
permanece oculto, ou seja, deixarão de lado a busca da verdade. O filósofo faz
uma referência ao poema “A imagem velada de Sais”, de Schiller, em que um jovem
egípcio é acometido por algo ruim quando desvela a verdade. E desta forma fica
claro o seu entendimento da necessidade de se “respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por
trás de enigmas e de coloridas incertezas”.
“Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola” |
Sobre a imagem:
Edvard
Munch (1863 – 1944) teve sua vida profundamente relacionada com doenças – como,
por exemplo, por ter perdido sua mãe e sua irmã devido à tuberculose – o que se
reflete diretamente em sua obra. Em 1919 pinta o seu “Auto-Retrato Depois da
Gripe Espanhola”, em que retrata a si mesmo, com fisionomia semelhante àquela
do seu mais famoso quadro (“O Grito”, em que representa seu sofrimento por uma
vida marcada por doenças), convalescente da gripe.
Resumo
efetuado por José Luiz Votto