sábado, 2 de novembro de 2013
Curso: "Freud e Nietzsche: filosofia, psicologia e psicanálise"
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Retomada das atividades
Nosso próximo encontro será no dia 11 de outubro
(Sexta-Feira), 17 horas, sala 204 no Centro de Ciências Sociais (Rua Alberto Rosa 154). Neste
semestre (2013/2) continuaremos debruçados sobre a obra A Gaia Ciência, partindo do livro III § 109 – Guardemo-nos!
Todos estão convidados! Abaixo segue um trecho do texto que
será o tema da nossa próxima discussão:
“Mas como poderíamos nós
censurar ou louvar o universo? Guardemo-nos de atribuir-lhe insensibilidade e
falta de razão, ou o oposto disso; ele não é perfeito nem belo, nem nobre, e
não quer tornar-se nada disso, ele absolutamente não procura imitar o homem!
Ele não é absolutamente tocado por nenhum de nossos juízos estéticos e morais!”
sábado, 10 de agosto de 2013
V Encontros Nietzsche - UFPel
Entre os dias 19 e 24 de agosto ocorrerá o V Encontros Nietzsche - UFPel.
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Aviso
Informamos que, em função da preparação e realização do Encontros Nietzsche, o Grupo de Estudos Nietzsche - UFPel entra em recesso até o dia 30/08 (a reunião do dia 09/08 está cancelada). A retomada do estudo da obra A Gaia Ciência se dará com a discussão dos aforismos 107 e 109, a ser conduzida por Clademir Araldi.
Relato da reunião do dia 26/07/2013 sobre A Gaia Ciência §80 e §82
Autorretrato com a orelha cortada - Vincent Van Gogh (1889) |
Na reunião do dia 26 de
julho de 2013, foram lidos e debatidos os aforismos §76 e §77 de A gaia ciência (1882). Num primeiro
momento, foi discutido o aforismo §76, “O perigo maior”, tendo sido entendido
que para Nietzsche existe um grupo de homens que não consegue viver com
fantasias, tendo uma necessidade de engessar o mundo. Foi a disciplina da mente
desses homens, entendida enquanto racionalidade, que garantiu a preservação da
humanidade. Por outro lado, haveriam os loucos, aqueles capazes da irrupção de
loucura entendida como “irrupção do capricho no sentir, ver e ouvir, o gosto na
indisciplina da mente, a alegria no ‘mau senso’”. Com isso foi discutido,
durante a reunião, que o louco seria aquele portador da capacidade de mudança.
Isto porque a loucura só é entendida enquanto tal pois é exceção, já que, se
todos fossem loucos, a loucura seria a razão.
Assim, entendeu-se que no pensamento de Nietzsche o que
está em jogo para os homens que entendem ser a sua racionalidade o motivo de
seu orgulho não é a verdade ou a certeza acerca de uma crença, mas sim
submeter-se à lei da concordância, ou
seja, o disciplinar de sua mente. De tal maneira, haveria o erro de dar sentido
ao que não tem sentido, e a submissão a tal crença. No entanto, o filósofo
compreende que justamente essa disciplina da mente foi a responsável pela
conservação da humanidade.
Quanto ao contexto de onde surgiriam esses loucos,
observou-se que justamente os investigadores da verdade são os que
primeiramente se cansam do ritmo lento dessa investigação, assim como artistas
e poetas, pois são espíritos impacientes. Foi ressaltado que Nietzsche está
utilizando termos que fazem referência à arte, como “metrônomos”, “ritmo”,
“dança”. Também foi discutido que o erro conservou a humanidade, e que os loucos também
são necessários para a economia da conservação, contanto que haja um controle
sobre estes, pois são uma exceção que não pode tornar-se regra. Por fim,
apontou-se o tom descritivo do aforismo, sem muitas prescrições,
evidenciando-se que Nietzsche parece interessado em explicitar o papel que o
louco tem, bem como seu perigo, não o vendo apenas como um indivíduo à parte da
sociedade.
Em seguida, com a leitura do aforismo §77, O animal com boa consciência, debateu-se que o Sul da Europa estaria mais marcado pela relação com o Império
Romano, enquanto que o Norte com os bárbaros, sendo ressaltado que para
Nietzsche a ideia de refinamento está relacionada com o mundo greco-romano, por
isso havendo esta valorização do Sul como não possuindo problemas com a
vulgaridade, posto que “o que aí é vulgar se apresenta com a certeza e
segurança de si de qualquer coisa nobre”. Por outro lado, no Norte
encontraríamos um rigor de costumes, havendo assim uma vergonha do artista que
se rebaixa.
Foi também debatido o significado do uso da imagem de
máscaras no aforismo. Seria no mesmo
sentido da caracterização dos gregos como “superficiais por profundidade”, ou
seja, como uma forma de encobrir a profundidade? Ou seria no sentido de o artista
utilizar-se da máscara como forma de alcançar a universalidade? Assim, a máscara seria associada à “regra”, e a “loucura” estaria relacionada às vanguardas. Com isso,
entendeu-se que um gosto mais refinado não se utilizaria do artifício da
máscara.
quinta-feira, 25 de julho de 2013
Relato da reunião do dia 19/07/2013 sobre A Gaia Ciência §57 e §58
Retrato de Mademoiselle Caroline Rivière - Ingres (1806) |
No
encontro do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel do dia 19 de julho de 2013,
deu-se início ao estudo do Livro II de A
gaia ciência (1882) através da leitura e discussão dos aforismos §57 (“Aos
realistas”) e §58 (“Somente enquanto criadores!”).
Quanto
ao aforismo §57, após sua leitura, foi destacado que nesta obra e, em especial,
no Livro II, encontramos intensos diálogos com a arte. No entanto, também foi
levantada a especulação de que ao falar de “realistas”, Nietzsche esteja se
referindo à ciência mecanicista do século XIX, que se entendia enquanto isenta
de paixões na sua prática, ou seja, que acreditava num acesso direto à realidade
para o estabelecimento do conhecimento. Portanto,
Nietzsche se dirige a tais realistas como “queridas imagens de Sais”, numa
referência à obra de Schiller em que um jovem egípcio busca a verdade e quando
a descobre é acometido por algo ruim. Seria identificável, de
tal forma, uma postura prepotente da ciência quando esta pensa ver a realidade
do mundo como nunca se viu antes, fundando-se, por exemplo, numa confiança em
seu rigoroso método. Ou seja, como se suas descrições do mundo estivessem
isentas de qualquer cunho humano, como se não fossem baseadas em avaliações,
fundadas em paixões humanas. E o que Nietzsche argumenta no aforismo é que
estes “realistas” baseiam-se em avaliações ultrapassadas, oriundas de paixões
de séculos passados.
Também
foi apontado, durante a reunião, que encontramos neste período da obra do
filósofo alemão a defesa de uma postura que continuará a ser apresentada até o
seu período maduro, qual seja, a de que o importante para Nietzsche não será
observar uma ciência ou um sistema filosófico analisando internamente seus
dogmas ou conceitos, mas buscando quais impulsos estão subjacentes a estes. Assim,
quando se fala em “buscar a verdade” numa ciência, por exemplo, o importante é
entender quais os interesses estão ocultos nesta dita busca. Como forma de
problematizar a questão, também foi ressaltado que a matemática surge como um
forte instrumento para fundamentar a legitimação de tal realismo, justamente
por servir de forte apelo retórico para formar uma visão do conhecimento como
algo frio, sem qualquer interferência subjetiva.
Também
foi questionado como compreender o estatuto da ciência, para Nietzsche, nesta
relação entre a arte e o saber jovial, na medida em que o filósofo nega o seu
caráter absoluto. Foi colocado, então, que o posicionamento de Nietzsche é
relativo ao perspectivismo, entendido enquanto intermediário entre a posição
radical de um dogmatismo e o relativismo, tendo em vista que para este último
todas as posições possuem o mesmo valor, enquanto que para Nietzsche as coisas
possuem valores diferentes.
Por
fim, observou-se que o uso do termo “embriaguez” no aforismo refere-se a um
estado da modernidade, e que os “homens sóbrios” seriam aqueles que também
estariam embriagados, mas, no entanto, sem perceber sua embriaguez, enquanto
Nietzsche aponta para outra perspectiva de “boa vontade em ultrapassar a
embriaguez”.
Após
tais discussões, seguiu-se a leitura do aforismo §58, “Somente enquanto
criadores!”. Nietzsche inicia tal aforismo apontando que lhe é mais importante compreender
como as coisas se chamam do que aquilo que elas são, ao que durante a discussão
relacionou-se com uma posição nominalista do debate dos universais, em que
encontramos a diferença entre a essência e os nomes. Isto estaria ligado com o
fato de, para Nietzsche, não haver uma realidade universal acessível sem
avaliações. O filósofo entenderia, assim, que de uma postura inicial de fixação
de nomes redundou-se em um essencialismo. Ou seja, a fixação dos nomes, dos
pesos e medidas e do modo como as coisas são vistas “gradualmente se enraizaram
e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo”: a aparência
torna-se essência e atua como essência.
Por
fim, foi especulado que novamente Nietzsche poderia estar criticando a ciência
na medida em que apresenta uma nova proposta, a saber, a de que para destruir
faz-se necessário criar algo novo. Com isso, estaria apontando o erro da
ciência em acreditar que quando se desse a revelação das coisas verdadeiras,
todas as interpretações anteriores estariam destruídas e descartadas enquanto
errôneas, estando assim também fixado um futuro baseado em tais “verdades”.
Sobre a imagem[1]:
Jean
Auguste Dominique Ingres foi um conhecido pintor neoclassicista, considerado o
último representante dos devotos às tradições da arte. Não por acaso, era
reconhecido retratista (seu gênero favorito). Em seus quadros, acreditava
captar e transmitir perfeitamente a essência do modelo sobre o qual se
debruçava, através de uma "pureza linear". Dizia que conseguia fazê-lo
de forma ainda mais excelente se almoçasse com o modelo ou pudesse fazer qualquer outra
atividade que os descontraísse e aflorasse "as expressões naturais"
da pessoa.
Algumas
de suas obras não foram reconhecidas pela academia (ainda muito rigorosa nessa
época) que lhe recomendava "estudar mais os clássicos", porém sem
incorrer em arcaísmos, como às vezes fazia. Devido à sua paixão pelo ideal
grego, chegava até mesmo a distorcer suas modelos na tela, a fim de
"aprimorá-las". Como diz Giulio Carlo Argan explicando Canova (o
fundador do belo ideal dessa época, porém fazendo-o majoritariamente através da
escultura - o que só vem a nos mostrar a esmagadora influência dos gregos neste
período), o belo ideal estava na figura
ou, mais precisamente, no sublimar-se da figura até identificar-se com a ideia
transcendental do belo. Ingres não admitia suas tendências de excessiva
idealização que o levavam a distorcer forma e espaço – o que podemos entender
como “a natureza corrigida pela arte”; tanto que se opôs veemente ao Romantismo
que aflorava em sua época (com Delacroix, principalmente). No entanto foram
justamente os adeptos deste movimento que souberam reconhecer seu valor, e não
a academia a quem tanto respeitava.
O
que vemos, então, é um artista que aperfeiçoa obsessivamente a técnica, produz
em uma tela uma espécie de "fotografia idealizada" do modelo. É tão
devoto às diretrizes da tradição clássica que distorce seu mundo a fim de
segui-las. Ingres é um grego artificial e, junto de sua personalidade, carrega
inovações que mais tarde servirão de inspiração para artistas Modernos como
Picasso e Matisse, que estão longe de dobrarem-se às tradições. Ingres incorreu,
em seu discurso, a uma autoenganação de que era inteiramente ortodoxo.
Inebriado por sua paixão, apenas podia acreditar-se
neoclassicista.
terça-feira, 16 de julho de 2013
A Gaia Ciência §11 – A consciência
Igor Morski - Enpundit |
Nietzsche inicia o aforismo
traçando considerações sobre o desenvolvimento orgânico da consciência e, ao
fazê-lo, a entende como último elemento desenvolvido no homem; não para
apresentá-la como ápice e ponto culminante da evolução, como faria uma
interpretação darwinista, mas apontando justamente para seu caráter inacabado e
“menos forte”. Com efeito, essa consciência inacabada leva a erros que podem
conduzir a humanidade à destruição, o que somente não ocorreu em virtude do
“vínculo dos instintos”.
Como a consciência não está matura,
ela é um perigo para o organismo de modo que a tirania sobre ela possui um
aspecto positivo: o homem não procurou mais por ela e, de alguma forma,
estagnou o seu possível desenvolvimento acelerado. O curioso é que foi
justamente essa tirania – má compreensão e orgulho do homem com relação à
consciência, tomando-a por grandeza dada, por faculdade acabada e crendo nela
repousar a essência do organismo – que desacelerou os seus erros, permitindo a,
ainda embrionária: “tarefa de incorporar
o saber e torná-lo instintivo”.
A Gaia Ciência §2 - A consciência intelectual
"A solidão no alvorecer" por Johann Heinrich Füssli |
Neste aforismo, Nietzsche questiona as formas com que as pessoas
se relacionam com as suas crenças. Enquanto por uma via há aqueles que possuem crenças
mesmo sem fornecer as razões para elas; por outro lado há a via da suspeita. Sendo
assim, Nietzsche inicia o aforismo argumentando que embora não queira acreditar
naquilo que sua experiência lhe mostra como evidente, a saber, que “a grande
maioria das pessoas não tem consciência intelectual”, tal observação é palpável
demais para que consiga se rebelar contra ela. O filósofo alemão diagnostica
que aqueles que consideram necessária tal consciência, e a exigem dos outros,
encontram-se solitários, ainda que rodeados de pessoas, como nas cidades
populosas, já que não há pares nessa sua exigência no trato com as crenças.
Nietzsche também aponta que não só as pessoas são desprovidas da
referida consciência intelectual, como também são indiferentes àqueles que as
alertam a respeito disso. Portanto, a indiferença das pessoas frente a este
questionador funciona como um agravante ao deserto da sua solidão. Isto porque
a indiferença se apresenta como a ausência de oposição, ou seja, sequer existe
uma tensão, uma forma de interação com o questionador, ainda que de conflito.
Logo, aquele que aponta que a forma de valorar das pessoas possa estar sendo
injusta não recebe como retorno sequer indignação, e quando muito a reação será
a de uma risada sobre a sua dúvida.
Assim, a consciência
intelectual está diretamente ligada à suspeita, à dúvida. Para Nietzsche, a
grande maioria (o que incluiria “os mais talentosos homens e as mais nobres
mulheres”) sequer duvida de suas crenças, não vê o problema que é estabelecer
seus valores sem uma ponderação racional: “a grande maioria não acha
desprezível acreditar isso ou aquilo e viver conforme tal crença, sem antes
haver se tornado consciente das últimas e mais seguras razões a favor ou contra
ela, e sem mesmo se preocupar depois com tais razões”. Assim, por melhor que
seja alguém, por mais que seja dotado de “bondade, finura e gênio”, ainda seria
um ser inferior, posto que de nada adianta tais virtudes se tal pessoa tolera em
si mesma “sentimentos frouxos ao crer e julgar”, ou seja, se esta pessoa é
leviana quanto ao que acredita e não tem a necessidade de buscar a certeza, o
que caracteriza os homens superiores e os diferencia dos inferiores.
Até no piedoso,
personagem que Nietzsche não admira, o filósofo identifica um ponto que nos
melhores homens e mulheres não encontrou: este tem ódio à razão, o que seria
uma tomada de posição frente à consciência intelectual, rejeitando-a, o que
difere daqueles que são simplesmente indiferentes à ela. O que é desprezível
para Nietzsche é estar diante de “toda a maravilhosa incerteza e ambigüidade da
existência” e não se posicionar, nem interrogar e nem ter ódio por quem
interroga, como o piedoso. Nietzsche aponta, então, que o que procura
primeiramente nas pessoas é a percepção do quanto isto é desprezível, e
argumenta que “algum desatino está sempre a me convencer de que todo ser humano
tem esta percepção, como ser humano. É minha espécie de injustiça”. Ou seja,
está sendo injusto na medida em que pensa que todos tem tal percepção, o que
está relacionado com o aforismo seguinte, §3: Nobre e Vulgar, em que escreve
sobre a “eterna injustiça dos nobres”. Tal injustiça significa que os nobres
consideram sua idiossincrasia do gosto necessária a todos, afirmam posições
novas partindo desta sua idiossincrasia, o que só é possível na medida em que
estes não sentem a si mesmos como naturezas excepcionais.
Resumo efetuado por José Luiz Votto
A Gaia Ciência §1 - Os mestres da finalidade da existência
O Enterro do Conde de Orgaz - El Greco |
No encontro do
GEN-UFPel do dia 24 de maio de 2013 foi dado o início ao estudo da obra A
gaia ciência (1882) com a leitura e
discussão do primeiro aforismo do Livro I, Os
mestres da finalidade da existência. Este inicia com a afirmação de Nietzsche
de que observa em todos os seres humanos o trabalho para a conservação da
espécie, entendido não como motivado por um amor à espécie, mas enquanto o mais
forte instinto nos homens. Este instinto seria “precisamente a essência da
linhagem e rebanho que somos”, ou seja,
estaria inerente em todos nós.
Ao advogar a tese
de que um instinto inexorável, que direciona os homens à conservação da
linhagem, está presente em toda a espécie, Nietzsche faz também uma crítica à
divisão estanque das pessoas entre úteis e nocivas, pois até “a pessoa mais
nociva pode ser a mais útil, no que toca à conservação da espécie; pois mantém
em si ou, por sua influência, em outras, impulsos sem os quais a humanidade teria
há muito se estiolado ou corrompido”. Desta forma, também tudo aquilo que se
chama de mau (como a ânsia de rapina e domínio) seria parte de uma “assombrosa
economia da conservação da espécie”, economia esta que, segundo Nietzsche,
conservou a nossa estirpe. Não haveria, então, ações boas ou más na
medida em que de qualquer forma tais ações resultariam na conservação da
espécie.
Nessa economia
global da conservação da espécie, o peso da existência do sujeito deixa de ser
tão forte, de modo que Nietzsche sugere que se siga “os seus melhores ou os
seus piores desejos e, sobretudo, pereça!”, pois afinal não importaria o tipo
do desejo, posto que, de qualquer forma, o seu leitor seria “benfeitor da
humanidade”. Com isso, Nietzsche está afirmando que o indivíduo visto da
perspectiva da espécie não teria relevância, ou seja, que não haveria diferença
para a continuidade da linhagem se o indivíduo adotou uma postura moral ou
outra.
No entanto, ainda
não teriam surgido aqueles capazes de rir inclusive das melhores características
dos outros e de si mesmos, evidenciando sua “ilimitada miséria de rã e de
mosca”, ou seja, sua insignificância num quadro geral da humanidade inscrita na
história. Com isto, fica claro que ainda não se percebeu esta “verdade”, e
também que sequer os melhores tiveram essa percepção, não tendo sido por isso
capazes de rir de si mesmos.
Para Nietzsche, o
riso só teria futuro a partir do momento em que a tese “a espécie é tudo, o
indivíduo, nada” fosse incorporada à humanidade, abrindo-se o acesso a uma
libertação e irresponsabilidade, de tal forma que “talvez o riso tenha se
aliado à sabedoria, talvez haja apenas gaia ciência”. Contudo, Nietzsche
diagnostica que no seu presente há uma tragédia, referente ao
fato desse ser o “tempo das morais e religiões”. Com isto, o filósofo alemão se
pergunta o que significa o aparecimento sempre renovado dos fundadores destas
morais e religiões, dos incitadores da luta pelas avaliações morais e dos mestres
dos remorsos e das guerras religiosas. Seguindo o contexto do termo tragédia,
descreve esses como os “heróis num palco”, e coloca os poetas, por exemplo, como aqueles que sempre foram
“camareiros de alguma moral”. Reiterando a sua tese de que todos trabalham para
a conservação da espécie, movidos pelo mais forte dos impulsos; Nietzsche
afirma que estes heróis também o fazem, ainda que pensem estar a serviço de
Deus, eles, em verdade, “promovem a vida da espécie, ao promover a fé na vida”.
Tal impulso de
conservação surgiria ocasionalmente como razão e paixão do espírito, trazendo
motivos e querendo fazer esquecer que é impulso, ou seja, ausência de motivos.
Isto seria efetuado através dos mestres da ética enquanto mestres da finalidade da existência. Estes seriam aqueles
que dão sentido ao que não tem sentido, ou seja, as coisas que ocorrem
necessariamente e por si, e que são explicadas por eles enquanto tendo sido
feitas para uma finalidade, enquanto razão. Para isso, esse mestre da ética
inventa uma segunda existência[3],
pois esse mundo não possuiria sentido imanente, sendo necessário recorrer a
algo fora dele. E também para eles não haveria espécie, posto o indivíduo ser
algo primordial.
Resumo efetuado por José Luiz Votto
quinta-feira, 23 de maio de 2013
Introdução à obra "A Gaia Ciência"
Na reunião do dia 17 de maio
de 2013 ocorreu o primeiro encontro do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel, no
qual tivemos a apresentação da metodologia e dos objetivos aos novos
integrantes. Para melhor situar estes novos integrantes foi comunicado o
ambiente de pesquisa em Nietzsche no Brasil (GEN – Grupo de Estudos Nietzsche)
e no exterior (GIRN – Groupe International de Recherches sur Nietzsche). Ainda sobre a pesquisa em Nietzsche, foram apresentadas
as principais revistas brasileiras especializadas no filósofo alemão.
Com base na biografia de CurtPaul Janz, destacou-se não só os aspectos biográficos de Nietzsche no período
de A
gaia ciência (1882) – obra que será
discutida no grupo ao longo do ano – mas também o contexto e a estrutura da
obra. Como complemento, foi lido em conjunto o escrito de Giorgio Colli (Escritossobre Nietzsche, p. 77-85), o qual
nos fornece uma bela introdução sobre os temas presentes na obra, tais como a
relação entre ciência e arte.
No xerox Meta Cópias (
Alberto Rosa esquina Alm. Tamandaré) está disponível um material de apoio às
atividades do grupo.
A próxima reunião será no dia 24
de maio na sala D, às 17 horas. Iremos trabalhar os dois primeiros aforismos
do livro I de A gaia ciência.
domingo, 5 de maio de 2013
Início das atividades do Grupo de Estudos Nietzsche - UFPel
Iniciaremos as atividades do Grupo de Estudos Nietzsche –
UFPel no dia 17 de maio (sexta-feira).
Lembramos que o grupo não é destinado apenas aos estudantes de filosofia, mas
também a todos os que possuem interesse na filosofia de Nietzsche. A reunião será na sala D do CCS (Rua Alberto Rosa n.154). A obra que
estudaremos neste ano é “A gaia ciência” (1882).
Vejamos o que Giorgio Colli afirma sobre “A gaia Ciência”:
“A Gaia Ciência
também é central no que respeita à posição entre arte e ciência. A paixão
ininterrupta de Nietzsche por este tema reflete as vivências da luta interna
entre as suas vocações antitéticas: de vez em quando um escrito revela o deslanche
momentâneo da luta. Aqui, ao contrário, só o título é já o indício de uma nova resolução:
o combate interior – um outro significado da ‘doença’ – não conduz à eliminação
de um dos dois combatentes (reprimir, sufocar uma parte vital de si não seria
de fato restabelecimento), mas à fundação de uma coexistência, numa esfera
transfigurada. Isto é ‘saúde’, poder ser poeta e cientista conjuntamente, poder
exercitar uma ciência não amuada, nem empertigada, nem sequer séria”.
domingo, 28 de abril de 2013
Minicurso: Noções gerais acerca do tema do ressentimento na filosofia de Nietzsche
O propósito do curso é colocar em relevo o modo como o
conceito “ressentimento” aparece e é utilizado na filosofia de Friedrich
Nietzsche e as possibilidades de superação do ressentimento consideradas por
ele e a partir de seu pensamento. O curso será organizado em três partes: na
primeira será caracterizado o conceito de ressentimento, seu aparecimento,
constituição e diferentes usos no interior da obra de Nietzsche; na segunda
será analisada a questão do ressentimento em associação com a noção de vontade
de poder e em comparação com a noção de má-consciência; na terceira serão
discutidas algumas possibilidades de saídas para o problema do ressentimento na
e a partir da filosofia de Nietzsche.
Ministrante:
Prof. Dr. Antonio Edmilson Paschoal (PUC-PR)
Período: 8 a 10 de maio:
dia
08: 15h - 18h30;
dia
09: 14h - 17h30;
dia
10: 8h30 - 11h30.
Local: Campus
das Ciências Sociais (Rua Alberto Rosa, 154)
Inscrições: pelo
e-mail ppgfilosofia@ufpel.edu.br
segunda-feira, 1 de abril de 2013
I Workshop Understanding Naturalism
O Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel convida para o “I
Workshop
Understanding Naturalism”. O evento ocorrerá nos dias 15 e
16 de abril. Destacamos a mesa redonda do dia 16 (17hrs), na qual o Prof. Dr.
Clademir Araldi (UFPel) e o Prof. Dr. Rogério Lopes (UFMG) irão discutir sobre “o
naturalismo em Nietzsche”.
É possível encontrar uma coletânea de textos sobre o tema do
naturalismo em Nietzsche na edição 29 dos Cadernos Nietzsche publicada em 2011.
sexta-feira, 22 de março de 2013
A Gaia Ciência §§ 2, 3, 4
A Gaia Ciência §2
Nietzsche
inicia o segundo aforismo de seu prólogo (1886) para a obra A Gaia Ciência (1882)
abordando a relevância da sua saúde na criação de sua filosofia. Dado que no
aforismo anterior o filósofo apresentava o período em que surge o livro que
introduz com este texto – e atribuía a ele um caráter de esperança renovada e
embriaguez da convalescença –, questiona-se sobre o “que temos nós com o fato
de o sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?”. Assim, se coloca em terceira
pessoa: seria este Nietzsche do texto aquele de 1882 ou o de 1886? Fica claro,
aqui, que Nietzsche vê o ser humano, e no caso a si mesmo, como algo fugaz, que
está em um constante processo de modificação, e que, ao escrever sobre suas
obras passadas, é como se estivesse lendo outro autor, com outra saúde. A
relação entre filosofia e saúde está inscrita entre as questões mais atraentes
para um psicólogo, alega o filósofo, tendo em vista que “desde que se é uma
pessoa, tem-se necessariamente a filosofia de sua pessoa”.
Com isto, Nietzsche assume a inevitável pessoalidade da
filosofia, algo que nos remete à obra Além
do bem e do mal, escrita no mesmo ano dos prólogos, em que considera toda
filosofia como sendo a confissão de seu autor. Esta perspectiva da filosofia
como algo pessoal também remete ao período em que Nietzsche viveu, a saber, de
uma efervescência das possibilidades abertas pela ciência à filosofia – como,
por exemplo, de entender o comportamento a partir de estudos científicos. Nietzsche
continua sua argumentação no prólogo apresentando duas formas de origem da
filosofia: a primeira, em que as deficiências filosofam, e a segunda, em que as
riquezas e forças o fazem. Refere-se aos autores da primeira forma de filosofia
como aqueles que necessitam da sua filosofia, “seja como apoio, tranqüilização,
medicamento, redenção, elevação, alheamento de si”, e aos da segunda forma como
aqueles para os quais a filosofia é apenas um luxo, ou “no melhor dos casos a
volúpia de uma triunfante gratidão, que afinal tem de se inscrever, com
maiúsculas cósmicas, no firmamento dos conceitos”.
Tem-se aqui claramente um dos pontos mais marcantes para
uma leitura naturalista de Nietzsche, a saber, da indissociabilidade entre alma
e corpo, não sendo possível desta maneira se pensar uma alma imortal desligada
do corpo mortal. Com isso, surgem alguns possíveis questionamentos com relação
a esta perspectiva nietzschiana: até que ponto a fisiologia influencia na
“alma”? Os pensamentos seriam completamente influenciados pelo corpo? A
supremacia seria do corpo, ou do espírito? Tal perspectiva também poderia
acarretar um problema grande como o do perigo de se cair em uma eugenia. No
entanto, o próprio prefácio daria um argumento contra uma crítica neste
sentido, pois como veremos no §3, para Nietzsche há uma necessidade da doença,
na medida em que esta traz um aprofundamento
daquele que a sofre. De sorte que a doença surge como algo que pode trazer
contribuições à filosofia, mas sendo importante que esta supere a doença.
Ainda que a filosofia possa surgir da doença, mas também
da força, Nietzsche diagnostica que talvez a maior parte dos pensadores da
história da filosofia tenham construído seus pensamentos baseados em suas
crises. Surgiria, desta forma, o questionamento das conseqüências para o pensamento
de uma tal sujeição da filosofia à doença. Para Nietzsche, o corpo doente
impeliria o espírito ao sossego, brandura, remédio, e conclui assim que:
Toda filosofia
que põe a paz acima da guerra, toda ética que apreende negativamente o conceito
de felicidade, toda metafísica e física que conhece um finale, um estado final de qualquer espécie, todo anseio
predominantemente estético ou religioso por um Além, Ao-lado, Acima, Fora,
permitem perguntar se não foi a doença que inspirou o filósofo.
Com isto,
Nietzsche está criticando uma má-compreensão do corpo, fundada em um
“inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da
objetividade”, que pode ser encontrada na filosofia metafísica. Para o
historiador e psicólogo, as “insânias da metafísica” seriam preciosas
indicações, sintomas do êxito ou fracasso do corpo. Por fim, encerra o aforismo
apontando para a expectativa de que um médico
filosófico (aquele que se dedicaria à saúde de um povo, época, raça ou
mesmo da humanidade) algum dia pudesse afirmar a suspeita de Nietzsche de que o
filosofar não teria suas questões voltadas à busca da “verdade”, mas sim à
saúde, futuro e, numa clara referência à vontade de poder, para o “poder,
crescimento, vida”.
A Gaia Ciência §3
No
terceiro aforismo de seu prólogo, Nietzsche ressalta que não é ingrato em
relação ao período de doença pelo qual passou. Segundo ele, a instabilidade de
sua saúde lhe trazia vantagens que outros que gozavam de força não teriam como alcançar.
Assim, se tornaria questionável se a doença era realmente dispensável “para
nós”. A grande dor seria o liberador do espírito, enquanto mestre da grande
suspeita. Isto quer dizer que a dor desligaria os pensadores de sua confiança,
de “tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade”. De tal maneira, a dor
ocasionaria o aprofundamento (algo
que Nietzsche entende como diferente de aperfeiçoamento), pois a ela é possível
que se oponha o orgulho ou diante dela se gere um retiro para o “Nada oriental
– denominado Nirvana –, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se,
apagar-se”. Estes exercícios sobre si mesmo nos levam à questão de como dominar
a si próprio e ainda interrogar-se? E em relação ao perspectivismo
nietzschiano, como manter o ponto de interrogação e ainda ter o domínio sobre
si? Nietzsche entende que, após o período de doença, se perde a confiança na
vida, tendo esta mesma se tornado um problema, dado que passa a ser questionada
“profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente”. No
entanto, o amor à vida ainda é possível, como “o amor a uma mulher da qual se
duvida”.
Haveria,
assim, uma arte da transfiguração, que seria a própria filosofia, associada à
vida de um filósofo que percorreu diversos estados de saúde, em que seu estado
é transposto, a cada vez, “para a mais espiritual forma e distância”. A
filosofia, então, nada teria a ver com algum acesso direto ao verdadeiro, mas
de colocar a própria vida em forma de pensamento, não sendo assim possível uma
distinção entre corpo e alma ou entre alma e espírito:
(...) não
somos aparelhos de objetivar e registrar, de entranhas congeladas – temos de
continuamente parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes
maternalmente todo o sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento,
consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver – isto significa, para
nós, transformar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o
que nos atinge; não podemos agir de
outro modo.
Encontramos aqui, portanto, um aspecto da filosofia
entendida como aliada à fisiologia, na medida em que a filosofia seria escrita
com o sangue. Nota-se também que Nietzsche se refere ao leitor como se este
fosse também um filósofo. Há uma preocupação nos prólogos de 1886 que é a de
definir o seu leitor ideal, aquele que estivesse capacitado à leitura de sua
obra. Neste sentido, pode-se entender que a sua linguagem metafórica também
seria uma forma de selecionar aquele leitor que Nietzsche desejava ter, o que
tivesse vivências como as suas.
A Gaia Ciência §4
Como forma
de encerrar o último dos prólogos escritos para suas obras anteriores,
Nietzsche aponta novamente para o retorno da enfermidade. Quando fala de cura,
está se referindo a uma cura num âmbito maior do que a doença de um corpo no
sentido específico, a saber, da cura da humanidade. Entende esse retorno da
enfermidade em que “voltamos renascidos (...)
mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria”, como a origem de uma nova
forma de lidar com a vida, com mais inocência, mas também marcada por um
refinamento.
Neste sentido,
é crítico do romantismo, e também do romantismo do conhecimento, pois “fere os
ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse
romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora”. Assim,
entende que há a necessidade de outra arte, oposta ao romantismo: uma arte para
artistas, que seja “ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente
artificial”, sugerindo um retorno aos gregos. Estes, na leitura de Nietzsche,
adoravam a aparência, permaneciam na superfície: “eram superficiais – por profundidade”, sendo requerido para
isto uma jovialidade, um aprendizado do esquecimento, do não-saber.
O que
Nietzsche sugere é que estas pessoas profundas, entre as quais se inclui e
também ao seu leitor, não procurarão mais desvelar aquilo que por boas razões
permanece oculto, ou seja, deixarão de lado a busca da verdade. O filósofo faz
uma referência ao poema “A imagem velada de Sais”, de Schiller, em que um jovem
egípcio é acometido por algo ruim quando desvela a verdade. E desta forma fica
claro o seu entendimento da necessidade de se “respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por
trás de enigmas e de coloridas incertezas”.
“Auto-Retrato Depois da Gripe Espanhola” |
Sobre a imagem:
Edvard
Munch (1863 – 1944) teve sua vida profundamente relacionada com doenças – como,
por exemplo, por ter perdido sua mãe e sua irmã devido à tuberculose – o que se
reflete diretamente em sua obra. Em 1919 pinta o seu “Auto-Retrato Depois da
Gripe Espanhola”, em que retrata a si mesmo, com fisionomia semelhante àquela
do seu mais famoso quadro (“O Grito”, em que representa seu sofrimento por uma
vida marcada por doenças), convalescente da gripe.
Resumo
efetuado por José Luiz Votto
terça-feira, 5 de março de 2013
Próximo encontro
Nosso próximo
encontro (08/03/2013) será na sala 101 do ICH, antigo prédio do Salis Goulart
(Felix esquina Tiradentes).
segunda-feira, 4 de março de 2013
A Gaia Ciência, prólogo §1
“Árvore da Esperança, Mantém-te Firme” (1946) |
Com o
recomeço do Grupo de Estudos Nietzsche da UFPel, foi iniciado o estudo da obra A Gaia Ciência, publicada em 1882,
através da leitura do primeiro aforismo de seu prólogo. Este prólogo faz parte da releitura crítica feita
por Nietzsche em 1886, ano em que escreveu Além
do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro, assim como os prólogos
para a segunda edição de suas obras O
nascimento da tragédia, Humano,
demasiado humano (I e II), Aurora
e A gaia ciência. Com estes prólogos,
Nietzsche busca esclarecer certos conceitos para reforçar a interpretação que
gostaria que estes tivessem, e assim pode-se pensar que sua intenção era de
“aproximar as obras juvenis daquelas de sua fase madura, inaugurada por um
livro emblemático, Assim falou Zaratustra”
[1].
Desta
forma, faz-se necessário considerar que os prólogos de 1886 possuem um aspecto
de reposicionamento sobre temas da sua obra, sendo inscritos no terceiro
período de sua produção (1882–1888), onde se encontra sua filosofia madura,
posterior ao período intermediário em que os quatro primeiros livros de A gaia ciência foram escritos (1876–1882)[2]. No
entanto, tal periodização poderia apresentar problemas, tal como colocado por
Giorgio Colli, que alerta que temas de Assim
falou Zaratustra – como a Morte de Deus, o Amor Fati, o Eterno Retorno e o próprio Zaratustra – já estariam presentes em A gaia ciência. Desta perspectiva, se
poderia entender A gaia ciência como
uma espécie de introdução à Assim falou
Zaratustra. Sendo assim, a divisão em períodos não teria uma rigidez, mas
seria uma forma de se compreender as mudanças dos referenciais adotados por
Nietzsche em diferentes momentos de sua vida e, de tal maneira, apreender os
movimentos de sua filosofia.
O prólogo
de A gaia ciência inicia com um
questionamento acerca de sua própria relevância, e também com a colocação, por
Nietzsche, do leitor na posição de um provável incapacitado para a compreensão
da sua obra, na medida em que a vivência das experiências singulares de
Nietzsche na escrita desta possivelmente não seria algo passível de
familiarização através da mera leitura de um livro:
“Talvez
não baste somente um prólogo para este livro; e afinal restaria sempre a dúvida
de que alguém que não tenha vivido algo semelhante possa familiarizar-se com a
vivência deste livro mediante prólogos”.
Tal
como Assim falou Zaratustra, que Nietzsche considera um livro que exige vivências
semelhantes às suas para a sua compreensão, o prólogo de A gaia ciência também problematiza as condições de possibilidade da
comunicabilidade da obra que apresenta. Neste sentido, pode-se refletir sobre a
tarefa do estudo do pensamento de Nietzsche, quando ele próprio alerta para a
importância que sua vida tem em sua obra, para a indissociabilidade entre suas
vivências e sua produção filosófica. Assim, o estudo do pensamento nietzschiano
deveria passar pela biografia do autor? Ou deveria se ater às suas publicações e
ao que nelas foi expresso?
A gaia ciência teria,
nas palavras de Nietzsche, uma “atmosfera de abril”. O livro fora escrito após um
período de forte crise na saúde do pensador, ocorrida na época da produção de Humano, demasiado humano, entre 1878 e
1879. A doença é descrita por Nietzsche no prólogo como a “tirania da dor”, a
“velhice interposta no lugar errado”, e teria trazido como conseqüências uma
“limitação ao que é amargo, acre, doloroso no conhecimento”. Sendo assim, seria
possível dizer que um filósofo doente produziu uma filosofia doente? Estaria
Nietzsche julgando suas obras anteriores ou apenas expondo as condições em que
foram escritas? Enquanto Aurora
já era um novo despertar, A gaia ciência vem,
com toda força, no mesmo sentido. Por isso o livro teria essa atmosfera de
abril, a saída do inverno rumo à primavera, período de transição. Na época da
escrita da obra, Nietzsche estava na transição entre doença e saúde, e
utilizando-se da metáfora da atmosfera de abril, aprofunda sua descrição deste
período como aquele em que “somos lembrados tanto da proximidade do inverno
como da vitória sobre o inverno, a qual virá, tem de vir, talvez já tenha
vindo”.
Assim, a
abertura da perspectiva de restabelecimento da saúde – em que um “espírito que
pacientemente resistiu a uma longa, terrível pressão (...) sem sujeitar-se, mas
sem ter esperança” é tomado por esta esperança de retomada de sua saúde – traria
uma gratidão e uma embriaguez da convalescença. Segundo Nietzsche, A gaia ciência seria tomada dessa
gratidão, e a embriaguez, por sua vez, seria a causa de “muita coisa irracional
e tola” e de “muita leviana ternura” esbanjada com problemas “pouco dispostos a
deixar-se acariciar”. O livro seria, então, um divertimento após a privação, um
júbilo da retomada da força e da fé no futuro.
Trazendo
estas explicações sobre o contexto pessoal anterior à escrita da obra,
Nietzsche questiona “quem poderia experimentar tudo isso como eu fiz?”, e
observa que, quem o fizesse, também perdoaria a inclusão de canções no livro,
nas quais um poeta zomba de todos os poetas. Por fim, Nietzsche alerta que não
são apenas os poetas o seu alvo, e quando cita Incipit tragoedia [A tragédia começa] do fim do livro que está
apresentando (GC, Livro IV, §342), diz que nisso se anuncia algo maldoso: Incipit parodia [A paródia começa], numa
alusão à Assim falou Zaratustra, obra
que se segue à A gaia ciência, em que
a paródia foi um recurso muito utilizado, sobretudo se apropriando de
referenciais encontrados em textos bíblicos.
Sobre a imagem:
Frida Kahlo é uma artista cuja obra foi marcada por sua
saúde. Aos seis anos de idade teve poliomielite, o que a deixou com a perna
direita mais curta e mais fina que a esquerda, além da musculatura atrofiada.
Por este motivo, utilizava vestidos longos. Aos dezoito anos sofre um acidente
em que seu ônibus choca-se com um bonde, sendo ela perfurada pelo pára-choque
de um dos veículos, comprometendo sua coluna e incapacitando-a de dar à luz a
filhos. Em 1946, após passar por mais uma cirurgia (ao todo foram trinta
operações em sua vida, sendo sete de coluna), pinta o quadro “Árvore da
Esperança, Mantém-te Firme”, em que retrata o sofrimento e a esperança de
recuperação, representados por duas Fridas. Em suas mãos, além do colete para a
coluna que a acompanhou por longo tempo, encontra-se uma bandeirola com a frase
que dá título ao quadro.
''Estou quase
terminando o quadro que nada mais é que o resultado da tal operação. Estou
sentada à beira de um precipício - com o colete em uma das mãos. Atrás estou
deitada numa maca de hospital - com o rosto voltado para a paisagem - um tanto
das costas está descoberto, onde se vê a cicatriz das facadas que me deram os
cirurgiões filhos de sua... recém-casada mamãe.'' Frida Kahlo.
Resumo
efetuado por José Luiz Votto
[1]
Cf. BURNETT, Henry. Cinco Prefácios para
cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche. Belo
Horizonte: Tessitura, 2008, p. 19.
[2]
Tomamos tal divisão em períodos da obra de Nietzsche de acordo com aquela apresentada
por Scarlett Marton. Cf. MARTON, Scarlett. Nietzsche:
das forças cósmicas aos valores humanos – 3. ed. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010, p. 43-44.
terça-feira, 15 de janeiro de 2013
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