Retrato de Mademoiselle Caroline Rivière - Ingres (1806) |
No
encontro do Grupo de Estudos Nietzsche – UFPel do dia 19 de julho de 2013,
deu-se início ao estudo do Livro II de A
gaia ciência (1882) através da leitura e discussão dos aforismos §57 (“Aos
realistas”) e §58 (“Somente enquanto criadores!”).
Quanto
ao aforismo §57, após sua leitura, foi destacado que nesta obra e, em especial,
no Livro II, encontramos intensos diálogos com a arte. No entanto, também foi
levantada a especulação de que ao falar de “realistas”, Nietzsche esteja se
referindo à ciência mecanicista do século XIX, que se entendia enquanto isenta
de paixões na sua prática, ou seja, que acreditava num acesso direto à realidade
para o estabelecimento do conhecimento. Portanto,
Nietzsche se dirige a tais realistas como “queridas imagens de Sais”, numa
referência à obra de Schiller em que um jovem egípcio busca a verdade e quando
a descobre é acometido por algo ruim. Seria identificável, de
tal forma, uma postura prepotente da ciência quando esta pensa ver a realidade
do mundo como nunca se viu antes, fundando-se, por exemplo, numa confiança em
seu rigoroso método. Ou seja, como se suas descrições do mundo estivessem
isentas de qualquer cunho humano, como se não fossem baseadas em avaliações,
fundadas em paixões humanas. E o que Nietzsche argumenta no aforismo é que
estes “realistas” baseiam-se em avaliações ultrapassadas, oriundas de paixões
de séculos passados.
Também
foi apontado, durante a reunião, que encontramos neste período da obra do
filósofo alemão a defesa de uma postura que continuará a ser apresentada até o
seu período maduro, qual seja, a de que o importante para Nietzsche não será
observar uma ciência ou um sistema filosófico analisando internamente seus
dogmas ou conceitos, mas buscando quais impulsos estão subjacentes a estes. Assim,
quando se fala em “buscar a verdade” numa ciência, por exemplo, o importante é
entender quais os interesses estão ocultos nesta dita busca. Como forma de
problematizar a questão, também foi ressaltado que a matemática surge como um
forte instrumento para fundamentar a legitimação de tal realismo, justamente
por servir de forte apelo retórico para formar uma visão do conhecimento como
algo frio, sem qualquer interferência subjetiva.
Também
foi questionado como compreender o estatuto da ciência, para Nietzsche, nesta
relação entre a arte e o saber jovial, na medida em que o filósofo nega o seu
caráter absoluto. Foi colocado, então, que o posicionamento de Nietzsche é
relativo ao perspectivismo, entendido enquanto intermediário entre a posição
radical de um dogmatismo e o relativismo, tendo em vista que para este último
todas as posições possuem o mesmo valor, enquanto que para Nietzsche as coisas
possuem valores diferentes.
Por
fim, observou-se que o uso do termo “embriaguez” no aforismo refere-se a um
estado da modernidade, e que os “homens sóbrios” seriam aqueles que também
estariam embriagados, mas, no entanto, sem perceber sua embriaguez, enquanto
Nietzsche aponta para outra perspectiva de “boa vontade em ultrapassar a
embriaguez”.
Após
tais discussões, seguiu-se a leitura do aforismo §58, “Somente enquanto
criadores!”. Nietzsche inicia tal aforismo apontando que lhe é mais importante compreender
como as coisas se chamam do que aquilo que elas são, ao que durante a discussão
relacionou-se com uma posição nominalista do debate dos universais, em que
encontramos a diferença entre a essência e os nomes. Isto estaria ligado com o
fato de, para Nietzsche, não haver uma realidade universal acessível sem
avaliações. O filósofo entenderia, assim, que de uma postura inicial de fixação
de nomes redundou-se em um essencialismo. Ou seja, a fixação dos nomes, dos
pesos e medidas e do modo como as coisas são vistas “gradualmente se enraizaram
e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo”: a aparência
torna-se essência e atua como essência.
Por
fim, foi especulado que novamente Nietzsche poderia estar criticando a ciência
na medida em que apresenta uma nova proposta, a saber, a de que para destruir
faz-se necessário criar algo novo. Com isso, estaria apontando o erro da
ciência em acreditar que quando se desse a revelação das coisas verdadeiras,
todas as interpretações anteriores estariam destruídas e descartadas enquanto
errôneas, estando assim também fixado um futuro baseado em tais “verdades”.
Sobre a imagem[1]:
Jean
Auguste Dominique Ingres foi um conhecido pintor neoclassicista, considerado o
último representante dos devotos às tradições da arte. Não por acaso, era
reconhecido retratista (seu gênero favorito). Em seus quadros, acreditava
captar e transmitir perfeitamente a essência do modelo sobre o qual se
debruçava, através de uma "pureza linear". Dizia que conseguia fazê-lo
de forma ainda mais excelente se almoçasse com o modelo ou pudesse fazer qualquer outra
atividade que os descontraísse e aflorasse "as expressões naturais"
da pessoa.
Algumas
de suas obras não foram reconhecidas pela academia (ainda muito rigorosa nessa
época) que lhe recomendava "estudar mais os clássicos", porém sem
incorrer em arcaísmos, como às vezes fazia. Devido à sua paixão pelo ideal
grego, chegava até mesmo a distorcer suas modelos na tela, a fim de
"aprimorá-las". Como diz Giulio Carlo Argan explicando Canova (o
fundador do belo ideal dessa época, porém fazendo-o majoritariamente através da
escultura - o que só vem a nos mostrar a esmagadora influência dos gregos neste
período), o belo ideal estava na figura
ou, mais precisamente, no sublimar-se da figura até identificar-se com a ideia
transcendental do belo. Ingres não admitia suas tendências de excessiva
idealização que o levavam a distorcer forma e espaço – o que podemos entender
como “a natureza corrigida pela arte”; tanto que se opôs veemente ao Romantismo
que aflorava em sua época (com Delacroix, principalmente). No entanto foram
justamente os adeptos deste movimento que souberam reconhecer seu valor, e não
a academia a quem tanto respeitava.
O
que vemos, então, é um artista que aperfeiçoa obsessivamente a técnica, produz
em uma tela uma espécie de "fotografia idealizada" do modelo. É tão
devoto às diretrizes da tradição clássica que distorce seu mundo a fim de
segui-las. Ingres é um grego artificial e, junto de sua personalidade, carrega
inovações que mais tarde servirão de inspiração para artistas Modernos como
Picasso e Matisse, que estão longe de dobrarem-se às tradições. Ingres incorreu,
em seu discurso, a uma autoenganação de que era inteiramente ortodoxo.
Inebriado por sua paixão, apenas podia acreditar-se
neoclassicista.