Reunião do dia 05
de Outubro
Texto do mestrando
Rafael Dias Ferreira.
Aforismo 456 – Uma virtude em devir
A “honestidade” (Redlichkeit) é o assunto deste
aforismo. A ocorrência do termo, em Aurora, perfaz doze unidades
textuais, cujos registros transitam entre acepções correntes e especiais (cf. §
84, § 91, § 167, § 192, § 255, § 293, § 370, § 418, § 456, § 482, § 536, §
550). Dessa maneira, ao lado de definições que referem ideias de “probidade”,
“honradez”, “adequação”, “pureza” e “castidade”, Nietzsche contrapõe
entendimento conceitual específico para essa, assim nomeada, “virtude”, não sem
estranhamento por parte do leitor, devido à economia do filósofo quanto a
exposições do gênero. Formalmente, a estratégia de apresentação está em
suspender o desfecho do tema, a qual se observa em outros parágrafos de toda a
sua obra. Nessa direção, o aforismo começa por problematizar a unidade entre
virtude e felicidade no pensamento antigo e no cristianismo, tomada, por
conseguinte, como inevidente. A seguir, o argumento é o de que apesar dessa
síntese não ter origem na honestidade, não é, por outro lado, fruto da má
consciência (schlechtes Gewissen), pois o anseio que movia seu
caráter de veracidade transcende inclinações egoístas e se aproxima da
glorificação divina através de práticas virtuosas. Ainda que se possa suspeitar
da ironia de Nietzsche nesse ponto, afirmações dessa natureza – tais como:
“Busquem antes o Reino de Deus, e todo o resto lhes será dado!” (Mt, 6:33) –
são tomadas como verdades atemporais, apesar de todas as evidências contrárias
a estas, com isenção de remorso moral e religioso. As “pessoas de valor”,
contemporâneas ao filósofo, ainda estariam ligadas a esse nível de veracidade,
mas sem preocupações mais profundas com vínculos necessários por trás do
cultivo da virtude, o que lhes possibilitaria, por seu desinteresse,
preocuparem-se menos com a verdade. Nietzsche termina a seção com a seguinte
proposta: uma vez que seu aparecimento é recente, não constando no mundo antigo
e na era cristã, a “retidão”[1] pode
ser promovida ou inibida. Desse modo, Nietzsche trata o conceito, sobretudo, em
seu significado de honestidade para consigo mesmo (cf.
M/AA, § 167), isto é, como “jogo da verdade” („Wahrspielerei“)
(cf. M/AA, § 418). Portanto, como indicado no texto do parágrafo, o uso dá-se a
partir de concepção eminentemente moderna do vocábulo, ainda que entendida em
processo formativo, ao que é preciso lembrar que, na língua clássica francesa,
com a qual Nietzsche estava familiarizado por intermédio da literatura
moralista, a honestidade (honnêteté) representava conjuntos de valores
da moral social de estirpe nobre, a qualidade do “honnête homme”
mundano, agradável e distinto, pelas maneiras e pelo espírito: sinceridade no
trato social, propriedade no decoro e honradez por bom nascimento, como nesta
passagem, lembrada por Pascal, do Discours de la vraie honnêteté,
do chevalier de Méré: “‘Se alguém me perguntasse em que consiste a honestidade,
eu diria que não é outra coisa que sobressair em tudo o que diz respeito aos
atrativos e aos decoros da vida [em sociedade]’”[2] (Méré, citado in Pascal, Petite éd. Brunschvicg, 1909: 116). Assim sendo, com o aforismo, Nietzsche propõe espécie de
indicação para reforma de princípios, que norteariam o assentimento ou a recusa
a uma versão por vir da honestidade.
Indicações bibliográficas
Nietzsche, F. W. Aurora. Trad.,
notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
Méré (Antoine GOMBAUD, chevalier DE). Discours de la vraie honnêteté. In: Pascal, B. Pensées et opuscules.
Ed. M. Léon Brunschvicg. Paris: Hachette,
1909.
[1] Variante de “Redlichkeit”, na tradução
por Paulo César de Souza, que peca, contudo, em termos de cuidado conceitual,
visto que “retidão” pode ser compreendida como consonância à justiça.
[2] “« Si quelqu'un me demandait en quoi
consiste l'honnêteté, je dirais que ce n'est autre chose que d'exceller en tout
ce qui regarde les agréments et les bienséances de la vie. »”