Texto de Leonardo
Camacho de Oliveira - Mestrando
do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFPel.
Temos como meta para este breve ensaio instigar o debate acerca da interessante questão dos impulsos e como Nietzsche se serve dela para apresentar uma nova noção de sujeito. Para isto, nos voltaremos à obra Aurora (AU - 1881), onde tal noção é apresentada. Também intentaremos aproximar, apenas com relação a alguns pontos, as leituras de Hume e Nietzsche sobre o sujeito. Por fim, veremos como as considerações presentes em Aurora contribuem para uma interpretação naturalista do pensamento nietzschiano.
Antes de abordar o texto de Nietzsche é
importante que tenhamos em mente a noção de sujeito “vigente” naquele contexto.
Neste ponto, vemos como principal paradigma a noção kantiana, a qual coloca o
homem como um ser dotado de uma natureza dual. Ele é um ser sensível (submetido de forma heterônoma
às leis da natureza), mas capaz de razão,
em outras palavras ele tem a capacidade de impor a si uma lei racional que ele
mesmo constrói. Notemos que a capacidade de razão é, para Kant, o que distingue
o homem do restante da natureza, podemos mesmo dizer que é o que faz do homem,
homem.
Nietzsche, contudo, não pode de forma
alguma aceitar tal dicotomia do tipo homem, visto que esta capacidade de razão
está ancorada, em última instância, no fato
da razão[1].
Isto implica a difícil tarefa de interpretar a natureza humana sem recorrer a
pontos dogmáticos ou metafísicos. Com efeito, o autor de Aurora vai perscrutar o subsolo e os alicerces dos “majestosos edifícios morais”, se
servindo da atitude questionadora dos moralistas franceses e da frieza dos
psicólogos empíricos ingleses, provocando a derrocada de uma série de “verdades”,
as quais sustentavam a visão de mundo de seu tempo.
Um ponto de grande importância e especial
interesse para este trabalho é o papel dos impulsos e pulsões no homem. Ao
invés de endossar a visão de um sujeito que é capaz de sobrepujar seus impulsos
através da razão, Nietzsche, vai apresentar a razão também como um impulso. No
interessante aforismo 109 ele nos apresenta seis métodos para combater a
veemência de um impulso, mas antes que possamos pensar que ainda existe uma
possibilidade de se sobrepor aos impulsos, tal como havia em Kant, o filósofo
nos brinda com seguinte conclusão:
(...) mas querer combater a veemência de um
impulso não está em nosso poder, nem a escolha do método, e tampouco o sucesso
ou fracasso desse método. Em todo esse processo, claramente, nosso intelecto é
antes o instrumento cego de um outro impulso, rival daquele que nos tormenta
com sua impetuosidade: seja o impulso por sossego, ou o temor da vergonha e de
outras más consequências, ou o amor. Enquanto “nós” acreditamos nos queixar da
impetuosidade de um impulso, é, no fundo, um impulso que se queixa de outro; isto
é: a percepção do sofrimento com tal impetuosidade pressupõe que haja um outro
impulso tão ou mais impetuoso, e que seja iminente uma luta, na qual nosso
intelecto precisa tomar partido (Aurora: 109).
Vemos, então, como a noção de sujeito é
fragmentada em impulsos, os quais se encontram em uma constate luta pelo
domínio; cada impulso busca dominar os demais e impor sua interpretação ao
todo. Com efeito, o sujeito ou “eu” é determinado a cada momento pelo resultado
desta luta de impulsos, pois aquele impulso que domina impõe ao todo uma
ordenação e hierarquização. De modo que as ações, interpretações, juízos e
mesmo o próprio “ser” de um sujeito é resultado de um processo fisiopsicológico
de disputa entre impulsos. Logo, o significado de nossas vivências, não só é
relativo ao sujeito que as vivencia, mas também é relativo ao impulso dominante
naquele sujeito. Como Nietzsche bem exemplifica: “Tomemos uma experiência
trivial. Suponhamos que um dia, passando pelo mercado, notamos que alguém ri de
nós: conforme esse ou aquele impulso estiver no auge em nós, esse acontecimento
significará isso ou aquilo para nós” (Aurora:
119).
O pensador de Röcken, no entanto, é
sensível a dificuldade de assimilação de suas profundas considerações sobre a
natureza humana. Mesmo a palavra impulso possui uma carga semântica, que é
derivada de sua relação de oposição com a razão. Tal carga, resultante de
séculos de pensamento metafísico, é um empecilho para que compreendamos a
proposta nietzschiana. No aforismo 115 temos a seguinte consideração a este
respeito:
A linguagem e os preconceitos em que se
baseia a linguagem nos criam diversos obstáculos no exame de processos e
impulsos interiores: por exemplo, no fato de realmente só haver palavras para
graus superlativos desses processos e impulsos -; mas estamos
acostumados a não mais observar com precisão ali onde nos faltam as palavras,
pois é custoso ali pensar com precisão; no passado concluía-se automaticamente
que onde termina o reino das palavras também termina o reino da existência.
Raiva, ódio, amor, compaixão, cobiça, conhecimento, alegria, dor – estes são
todos nomes para estados extremos: os graus mais suaves e medianos, e
mesmo os graus mais baixos, continuamente presentes, nos escapam, e, no
entanto, são justamente eles que tecem a trama de nosso caráter e nosso
destino. (Aurora: 115).
Podemos notar que, sob a interpretação de
Nietzsche, a noção de impulso toma outro significado. Ao invés de serem tomados
apenas como estados extremos, os impulsos podem ser medianos, ou mesmo suaves,
o que nos permite, por exemplo, imaginar um impulso à serenidade, o qual se
encontraria em oposição ao impulso à ansiedade. Claro está, que isto é
fundamental para que compreendamos a proposta nietzschiana do sujeito
fragmentado em impulsos, pois podemos compreender uma atitude tal como a de
recusar uma bebida, não como um domínio da razão sobre o impulso à beber, mas a
vitória de um impulso à moderação.
Com base neste ponto, gostaríamos de apontar
para uma interessante aproximação desta abordagem dos impulsos de Nietzsche com
a dinâmica das paixões de David Hume (1711 – 1776). Em seu Tratado da natureza humana (1739/1740), Hume apresenta uma intricada
dinâmica das paixões, contudo, uma análise desta sistemática em detalhe foge da
proposta deste trabalho, de modo que apontaremos, de forma breve e geral,
algumas características, julgadas por nós relevantes. Em primeiro lugar devemos
ter em mente duas divisões independentes das paixões: elas podem ser fortes e fracas, na medida em que possuem maior ou menor influência causal
no agir do sujeito; e podem ser calmas e
violentas, de acordo com a sua
turbulência e intensidade sentida. O ponto fundamental é que podemos ter uma
paixão que é, ao mesmo tempo, calma e
forte, ou seja, ela não possui a turbulência
de uma paixão violenta, mas ainda sim é determinante na ação do sujeito, visto
que sua implicação causal é forte.
Tal raciocínio está atrelado a uma
interpretação da razão como incapaz de, por si só, determinar o agir humano.
Segundo Hume não há conflito entre razão e paixões, devido ao fato de que a
razão tem o secundário papel de buscar os meios adequados para alcançar os fins
impostos pelas paixões. Daí sua célebre afirmação de que “A razão é, e deve ser,
apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir
e obedecer a elas” (HUME, 2009, p. 451). Podemos notar como o pensador escocês
se insurge contra a crença dos racionalistas na razão como protagonista do
agir, bem como na existência de um conflito entre razão e paixões. Neste
sentido é interessante o comentário de John Rawls:
Este importante parágrafo encerra a
explicação de Hume do erro filosófico dos racionalistas: a saber, eles
confundem e influência abrangente e forte das paixões calmas
com as operações da razão. Recordemos que as paixões podem ser a um tempo fortes
e calmas. Os racionalistas são iludidos pela ausência de turbulência
ou violência no modo como essas paixões operam. Hume atribui um papel
fundamental às paixões calmas, ao menos quando são fortes, o que por vezes se
verifica. Sua influência se evidencia na maneira como elas regulam e controlam
nossa deliberação e conduta (RAWLS,
2005, p. 37).
Tendo observado isto, gostaríamos de
apresentar dois pontos convergentes entre Hume e Nietzsche: primeiro, é notável
que ambos atribuam um papel secundário à razão, Hume a coloca como serva das
paixões e Nietzsche a coloca como mais um impulso. Tal postura representa um
rompimento com a noção tradicional de sujeito racional, a qual é assentada em
uma metafísica da razão. Estes dois filósofos preferem depositar suas
esperanças na esfera muito mais palpável e natural das pulsões humanas. Logo,
ao invés de apresentarem o homem como separado do restante da natureza, pelo
fato de possuir a centelha divina da razão, o veem como determinado pelo fluxo
psico-fisiológico das pulsões.
O segundo ponto de convergência reside no
fato de ambos os pensadores apresentarem pulsões suaves ou calmas, e, com isso,
enfrentarem as dificuldades decorrentes de uma linguagem dotada de uma forte
carga metafísica. É interessante notarmos como ambos, ao recusarem a dicotomia
opositiva razão x impulsos/paixões, introduzem uma noção de pulsões não
turbulentas, no caso de Hume as paixões calmas e no de Nietzsche os impulsos
suaves; as quais possuem fundamental importância na pintura deste novo tipo de
sujeito fragmentado em pulsões, pois afinal de contas são estas pulsões suaves
que “tecem a trama de nosso caráter e nosso destino”. (Aurora: 115).
Atualmente, a análise psicológica dos
impulsos de Nietzsche e esses pontos de convergência com Hume estão servindo
para propiciar um novo viés interpretativo de Nietzsche como um pensador
naturalista. Temos hoje uma vasta e crescente bibliografia[2]
sobre este viés, a qual vem sendo instigada por descobertas científicas, as
quais, em não poucas vezes, estão confirmando as considerações nietzschianas.
Acreditamos que o tratamento dos impulsos em Aurora é fundamental para esta nova proposta interpretativa, além
dos pontos de convergência com Hume, os quais permitem, por exemplo, que Brian
Leiter apresente Nietzsche como um naturalista metodológico especulativo (Naturalista-M), “isto é, um
filósofo que, como Hume, deseja ‘construir teorias que sejam modeladas nas
ciências (...) tomando delas a ideia de que os fenômenos naturais possuem
causas determinísticas’”. (LEITER, 2011, p. 80). Até que ponto esta leitura é
possível e se podemos compreender Nietzsche como um pensador que apresenta uma
continuidade de resultados com a ciência é questão para uma próxima
oportunidade, por hora nos basta apresentá-la e convidar o leitor para este
debate.
Obras Referidas
HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
LEITER, Brian. O naturalismo de Nietzsche reconsiderado. In: Cadernos Nietzsche,
n. 29, São Paulo: 2011, p. 77 – 126.
NIETZSCHE,
Friedrich. Aurora. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
RAWLS,
John. História da filosofia moral. São
Paulo: Martins Fontes, 2005.
[1] A fundamentação da moral kantiana e a questão do fato da razão são questões de grande
complexidade e que fogem do tema de nosso trabalho, de tal modo que aos
interessados fica a indicação de leitura do texto da Professora Flávia Carvalho
Chagas, disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/viewFile/7840/5761
[2] Algumas indicações neste sentido: LEITER, B. Routledge Philosophy - Guidebook to
Nietzsche on Morality. London: Routledge, 2002. PRINZ, J. J.. The Emotion Construction of Morals. New
York: Oxford University Press, 2007.